Todas as seis ondas de grande tarifação anteriores adotadas pelos EUA tiveram como desdobramento uma maior militarização do mundo — incluindo uma que desembocou na Segunda Guerra Mundial (iStockphoto/Getty Images)
Colunista
Publicado em 24 de abril de 2025 às 06h00.
Quando Alexis de Tocqueville foi enviado pelo governo francês para estudar o sistema prisional americano, uma coisa chamou sua atenção de imediato sobre os Estados Unidos: a igualdade de condição. Não no sentido patrimonial ou de renda, claro. Mas uma igualdade perante a lei, sem privilégios a partir de sobrenome ou estratificação social. Da observação de uma sociedade que se guiava pela regra e não por laços afetivos, nasceria o clássico Democracia na América. Tocqueville chegara aos EUA em 1831, pouco depois da adoção de “The Tariff of Abominations”, uma das primeiras grandes incursões dos EUA pelo protecionismo, com tarifas de 45% sobre suas importações, cujos desdobramentos resultaram na “Nullification Crisis” de 1832 e 1833, quando a Carolina do Sul se rebelou contra a autoridade central, uma das raízes da posterior guerra civil de 1861 a 1865.
Instituições promotoras da igualdade de direitos e oportunidades, capazes de facilitar o acesso a recursos e serviços sob princípios universais e sem discriminação, são justamente aquelas chamadas de “inclusivas”. Ajudam a explicar por que algumas nações prosperam, enquanto a adoção de instituições extrativas (seu oposto) contribui para justificar por que outras nações fracassam. Além do famoso livro, a ideia rendeu dois Prêmios Nobel de Economia — primeiro para Douglass North; depois para Daron Acemoglu e James Robinson.
Em entrevista no dia 3 de abril, Barack Obama recuperou a questão em sua essência. Arrisco a tradução livre: “Isso se liga a uma coisa preciosa, que é: quem somos nós como país? E quais valores nos definem? (…) Uma das coisas que sempre nos distinguiram é essa ideia básica de que somos uma sociedade com base em regras, o que significa que posso apoiar um candidato ou outro e não serei perseguido pela polícia. Essa prática acontece em outros lugares — é o que acontece na Rússia; não aqui! Nós tomamos como garantido que não precisamos subornar ninguém ou contratar o primo de alguém para conseguir o que queremos. É assim que construímos uma economia tão forte quanto a nossa”.
No fundo, é o exato oposto do homem cordial, definido por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Aqui, há um desprezo pela regra e pelo contrato, em favor da pessoalidade, de laços afetivos, familiares e de coleguismo. O capitalismo de compadrio, em que a diferença entre o sucesso e o fracasso depende mais de proximidades com políticos ou autoridades do que de uma vantagem comparativa propriamente dita. Viajar a Brasília rende mais benefícios do que o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Como sintetiza Roberto DaMatta, os privilégios brasileiros e seu antagonismo com as instituições inclusivas poderiam ser sintetizados na famigerada pergunta: você sabe com quem está falando?
Desconfio que, se Tocqueville chegasse hoje aos Estados Unidos, escreveria um livro diferente. Talvez Democracia na América tivesse maior aderência à realidade se fosse rebatizado Raízes dos EUA. A truculência e, em alguns casos, o amadorismo do “Trumpnomics” avançam sobre qualquer regra ou instituição canônica, seja interna àquele país, seja definida na Ordem Mundial pós-1945. Do ponto de vista doméstico, os ataques ao “Estado profundo” perseguem justamente as instituições fundadoras dos Estados Unidos — como tem defendido Francis Fukuyama em uma série de artigos chamada Valuing the Deep State, a lealdade servil ao grande chefe (laços pessoais) tem estado acima das regras, dos processos internos e da meritocracia.
Quando Trump flerta com um terceiro mandato, quando critica a imprensa independente ou quando esbraveja contra o Judiciário, ele está se colocando acima das instituições consagradas americanas. E que não sejamos ingênuos em uma defesa purista. Todos sabemos que essas mesmas instituições são imperfeitas e contêm erros. Mas substituí-las arbitrariamente, sob critérios pessoais e individuais, não engendra riscos excessivos? Colocaremos o que em seu lugar? No âmbito externo, há riscos reais de que o arcabouço geopolítico global, tal como conhecemos nos últimos 80 anos, esteja esfarelando bem à nossa frente. O multilateralismo e a maior parte dos organismos supranacionais estão sendo revisitados e enfraquecidos.
A começar pela potencialmente mais emblemática dessas instituições: a ONU, cuja impotência para lidar ou impedir os conflitos correntes emerge de forma evidente. A Otan escancara um desequilíbrio factual, possivelmente um dos catalisadores para a reação americana recente. De 1990 a 2024, os EUA gastaram aproximadamente 20 trilhões de dólares em defesa, enquanto a Europa Ocidental teve dispêndio de 6 trilhões de dólares nesse escopo. Por fim, a Organização Mundial do Comércio nasceu com objetivos explícitos de redução das tarifas, dos subsídios e de barreiras não tarifárias. Não funcionou em várias frentes, mas nada se compara à China. Depois de ingressarem na organização em 2001, os chineses desrespeitaram acordos de propriedade intelectual, transferiram tecnologia nem sempre de forma apropriada, utilizaram-se de dumping, restringiram cotas de importações, elevaram requerimentos para licenças, e limitaram o uso das plataformas de tecnologia do Ocidente.
Se ainda não está clara a gravidade dos movimentos tectônicos em curso, houve apenas seis eventos na história dos Estados Unidos com protecionismo semelhante ao recém-implementado, sendo o atual mais bem comparado ao “Smoot-Hawley Tariff”, de 1930, com tarifas de 59%. Como consequência imediata daquela medida, o comércio global caiu pela metade. As tarifas contribuíram para o isolamento do Japão e da Alemanha, que passaram a se militarizar com maior intensidade. Na época, Thomas Lamont, do J.P. Morgan, declarou: “Eu quase me ajoelhei diante de Herbert Hoover pedindo para vetar a Smoot-Hawley Tariff. Aquele ato intensificou o nacionalismo em todo o mundo”. Com efeito, todas as seis ondas de grande tarifação nos EUA tiveram como desdobramento uma maior militarização do mundo. Os anos 1930 são apenas o caso mais proeminente. Só de aventarmos esse pesadelo, já é suficientemente assustador.
O investidor tentado a caçar barganhas entre as techs dos EUA após a queda recente deveria se lembrar de que o próximo bull market não costuma acontecer no mesmo lugar e segmento do anterior. Se essas forem mesmo as invasões bárbaras, o risco da queda do império americano deveria nos empurrar para outros nichos e outras geografias. Seria um ciclo em favor dos emergentes e uma nova corrida do ouro.