A tecnologia aplicada ao envelhecimento e ao cuidado: na foto, o robô de assistência Lemmy (Lemmy/Divulgação)
Repórter
Publicado em 12 de março de 2025 às 06h00.
Última atualização em 12 de março de 2025 às 10h02.
A longevidade é, definitivamente, uma marca do século 21. Em dez décadas, ganhamos mais de 40 anos de vida: enquanto em 1920 o brasileiro vivia em média 35 anos, atualmente a expectativa é de 76 anos. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que em 2050 mais de 2 bilhões dos habitantes do planeta terão acima de 60 anos (o dobro de hoje), o que significará uma em cada cinco pessoas no mundo. Destas, 500 milhões estarão na casa dos 80 e, nas projeções do Statista, 3 milhões terão ultrapassado os 100 anos.
Trata-se de uma conquista e tanto do ser humano, sem dúvida, mas com impactos significativos em diversas esferas. Combinado com a queda drástica da natalidade, esse boom da longevidade é o combustível do acelerado envelhecimento populacional que presenciamos; um movimento demográfico sem precedentes — e, segundo a ONU, irreversível. O cenário está criando uma nova realidade econômica e social que demanda atenção urgente de governos, empresas e sociedade. Estamos preparados para um futuro em que haverá mais pessoas maduras do que jovens?
É nesse quadro que a “economia do cuidado” emerge como ponto central, trazendo oportunidades, mas também desafios. O termo se refere ao conjunto de atividades e serviços destinados a garantir a sobrevivência e o bem-estar das pessoas. Abrange desde profissionais autônomos que atendem em domicílio (cuidadores, babás e empregadas domésticas, por exemplo) ou em instituições especializadas, até startups que desenvolvem ferramentas de teleassistência e tecnologias assistivas.
Jorge Felix, da USP: “Os grandes talentos logo exigirão um benefício salarial extra para custear o cuidado de familiares idosos” (Arquivo Pessoal/Divulgação)
Um elemento transversal
No Brasil, o cuidado é historicamente desempenhado de maneira informal pelas famílias, com a responsabilidade recaindo principalmente sobre as mulheres, vistas como cuidadoras naturais dos entes mais velhos — um trabalho invisível e não remunerado que corresponde a 13% do PIB do país, de acordo com cálculos da FGV. A partir da década de 1970, no entanto, com o aumento da longevidade e da participação feminina no mercado de trabalho, a demanda por serviços remunerados de cuidado foi impulsionada para além dos movimentos em prol dos direitos femininos. Agora, essa é também uma questão de ordem socioeconômica.
Um whitepaper do Fórum Econômico Mundial (FEM) identifica o cuidado como um fator-chave da prosperidade e, portanto, uma temática que líderes de todo o mundo devem tratar como prioridade. “De uma perspectiva macro, a economia do cuidado pode ser entendida como o motor da economia produtiva e um fator determinante nos resultados econômicos. Ela impacta o desempenho de todos os outros setores, da tecnologia à manufatura”, diz o documento.
O relatório salienta, ainda, que o cuidado é transversal, estando associado a várias outras questões, como crescimento econômico, planejamento demográfico, entrega de infraestrutura, resiliência climática, integração de tecnologia e fluxo de talentos, por exemplo. “É algo que afeta mais de 8 bilhões de pessoas que recebem e fornecem cuidados em diferentes pontos de sua vida”, afirma outro trecho.
Equação complexa
A previsão do IBGE é de que os 60+ sejam cerca de um terço da população brasileira em 2050, o que indiscutivelmente abre um mar de possibilidades para novos negócios e soluções. “A economia do cuidado é um dos pilares da economia prateada”, diz Ana Amélia Camarano, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “A tendência é o superenvelhecimento, que significa um crescimento mais acentuado dos 80+, uma população que requer cuidados intensivos e de longa duração. Precisamos olhar para esse cenário do ponto de vista das oportunidades, não só dos desafios”, afirma Camarano.
Porém, os desafios existem — e são consideráveis. Um deles reside na questão da mão de obra, que ainda é insuficiente e comumente pouco qualificada para atender uma população 60+ crescendo tão depressa. Nas projeções do FEM, a área de cuidados pode criar, globalmente, 300 milhões de empregos até 2035, uma grande oportunidade de geração de renda, especialmente para as mulheres. Para chegar a esse resultado, todavia, a Organização Internacional do Trabalho estima serem necessários investimentos em torno de 5,4 trilhões de dólares ao ano.
Além da escassez, a atividade de cuidador, mesmo muito demandada, continua sendo socialmente desvalorizada, o que desestimula o interesse pela profissão e impede que aqueles que já atuam na área tenham um trabalho digno e oportunidades de capacitação. “No Brasil, em 2019, eram 3,5 milhões de idosos com dificuldades para as atividades mais básicas da vida diária. Para eles, o cuidador é fundamental, mas é desvalorizado”, comenta Camarano.
Ana Amélia Camarano, do Ipea: “A economia do cuidado é um dos pilares da economia prateada” (Helio Montferre/Ipea/Divulgação)
O custo é uma questão
A equação fica mais complexa quando adicionamos o fator renda. Conforme o mercado cresce, levando a uma maior formalização e qualificação do trabalho de cuidado, mais alto fica o custo da mão de obra, o que dificulta o acesso da maioria das famílias brasileiras aos serviços disponíveis.
“Será um desafio para as empresas escalarem produtos e serviços. As pesquisas mostram que apenas cerca de 20% das famílias contratam babás, empregadas domésticas ou cuidadoras de idosos”, observa Jorge Felix, professor na pós-graduação em gerontologia da USP-EACH e pesquisador da Fapesp. Isto é, existe um espaço enorme para crescer, mas as companhias precisam encontrar caminhos para efetivamente acessar esse mercado em potencial.
Ainda na esfera do mercado de trabalho, Felix chama a atenção para as empresas que, segundo o professor, tendem a fechar os olhos para o trabalho do cuidado. “Mas posso dizer que isso vai bater na porta delas em breve e vai significar um grande custo de mão de obra. Os grandes talentos logo exigirão um benefício salarial extra para custear o cuidado de familiares idosos. Afinal, hoje muita gente sai do mercado porque precisa cuidar de pessoas idosas ou crianças.”
Acompanhamento por IA: a healthtech PsycoAI, de Fabio Tiepolo, traz soluções de cuidado para doenças crônicas comuns em idosos, como diabetes e hipertensão (PsycoAI/Divulgação)
Uma geração imprensada
Outro importante desafio na economia do cuidado tem a ver com isso. Cada vez mais pessoas na faixa dos 35 aos 50 anos precisam cuidar ao mesmo tempo dos filhos, ainda pequenos ou dependentes, e dos pais idosos, que requerem atenção constante — isso quando o pacote não inclui ainda os netos. Espremido entre as demandas de cuidado dos dois extremos, esse grupo apelidado de “geração sanduíche” muitas vezes tem de abandonar a carreira, mudar de cidade ou deixar de buscar um relacionamento.
Embora também existam homens “ensanduichados” e tenha havido muitos avanços para as mulheres nesse sentido, é sobre elas principalmente que ainda pesa a pressão de cuidar de tanta gente. Conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), em 2023 havia por volta de 1 milhão de adultos convivendo simultaneamente com idosos e crianças no lar, sendo a maior parte mulheres (60%). À medida que a população mais velha se amplia, o crescimento da quantidade de mulheres pertencentes à geração sanduíche também é maior do que na parcela masculina: elas aumentaram em 27% entre 2012 e 2023, enquanto a alta no grupo dos homens foi de 17%.
O fardo desproporcional tem implicações profissionais visíveis: do total de mulheres comprimidas pelo cuidado de ambos os lados, 34% estão fora do mercado de trabalho, quase seis vezes mais do que o percentual masculino (6%). E os números subestimam a quantidade real dessa geração, já que tem como base apenas os casos em que todos vivem na mesma casa. Em muitas situações, não consideradas no estudo, o adulto é responsável pelo cuidado do idoso, mas eles vivem em endereços diferentes.
Modelo atrativo: Sanii, startup que foca o atendimento de idosos em casa, já nos seus primeiros meses de atuação recebeu um aporte de 8 milhões de reais (Sanii/Divulgação)
Home, sweet home
Para apoiar as famílias nessa missão e, principalmente, promover o envelhecimento ativo e saudável, startups brasileiras estão inovando em diversas soluções. A Sanii, por exemplo, viu uma oportunidade de ajudar as pessoas a envelhecer melhor dentro de casa. Em inglês, esse conceito é chamado de “aging in place” e se refere ao envelhecimento em um ambiente familiar, com mais conforto e dignidade.
O foco do negócio hoje é auxiliar nas atividades diárias dos mais fragilizados, como banho, administração de remédios, troca de fraldas e afins. Para isso, a empresa trabalha em parceria com cuidadores e outras empresas do ramo, em conjunto com seu software e programa de cuidados domiciliares, o que possibilita a oferta de valores mais acessíveis.
“Em uma geração, haverá mais idosos na América do Sul do que na América do Norte. Contudo, não temos aqui a infraestrutura física que existe na América do Norte — por alguns estudos, temos apenas 1/30 do número de instituições de longa permanência por pessoa em comparação com lá. Isso significa que as pessoas vão precisar envelhecer em suas casas, o que, aliás, é o que preferem: ficar perto da família”, analisa Michael Kapps, um dos fundadores da Sanii.
A proposta da startup tem feito sucesso e a demanda não é um problema: com menos de dois anos de atuação, ela já acumula por volta de 300 clientes, duplicando ou triplicando o número de atendimentos a cada ano.
Veio para ficar: a telemedicina já se consolidou como ferramenta de acesso à saúde; só em 2023, foram mais de 30 milhões de atendimentos médicos com essa tecnologia (Riska/Getty Images)
IA para doenças crônicas
A PsycoAI, do mesmo fundador da plataforma de telemedicina Docway, é mais uma amostra do que as startups estão fazendo. Usando inteligência artificial, a healthtech traz soluções de cuidado especializado em doenças crônicas comuns a idosos, como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e respiratórias. O atendimento vai além das respostas padronizadas dos chatbots tradicionais: “A PsycoAI oferece agentes inteligentes capazes de interagir com usuários de forma mais humanizada e personalizada, auxiliando no diagnóstico, apoio emocional, entre outras áreas”, destaca a assessoria da empresa.
Apelidada de Beatriz, a chatbot responsável pelo tratamento crônico faz um acompanhamento contínuo e automatizado do paciente, ajudando na gestão do tratamento, no monitoramento de sintomas e na aderência às orientações médicas. Um paciente com diabetes tipo 2, por exemplo, recebe, em uma conversa semelhante à do WhatsApp, lembretes diários para medir a glicemia e tomar a medicação, orientações sobre dieta e atividades físicas, check-ups frequentes sobre sintomas e avisos sobre consultas e exames.
Pela inovação, a empresa já atraiu importantes investidores e estabeleceu parcerias com grandes players do mercado, como o Dr.consulta e o Hospital e Maternidade Santa Joana.
Avanço passa por tecnologia
Para Jorge Felix, da USP, negócios como esses, que detectam soluções para problemas reais, são os que mais vão ganhar mercado, principalmente os que usam tecnologia. Há mais de 20 anos ele analisa essas inovações no exterior e afirma que são cada vez mais marcadas pela alta tecnologia, o que suscitou o campo da gerontecnologia. “Na feira CES 2025, em Las Vegas, uma das principais atrações foram os robôs companheiros, como o Lemmy, da coreana Shinsung Delta Tech. Isso pode parecer futurista, mas a Alexa também era e hoje tem uma grande escala no Brasil fomentada pela população idosa”, pontua.
Ana Amélia Camarano, do Ipea, também destaca a tecnologia como vetor da expansão da economia do cuidado, desde que haja também inclusão digital do idoso, da família e do cuidador para usá-la no dia a dia. Ela lembra que as tecnologias assistivas não são apenas cadeira de rodas, cadeira de banho ou bengala. E o país está atento a isso. “Há um potencial enorme para outros dispositivos que ajudem na rotina, inclusive na robótica. Até o ano passado, quando fiz uma pesquisa, tinha mais de 300 grupos de pesquisa em universidades brasileiras desenhando protótipos. A questão é que eles não estão chegando à indústria.”
A grande oportunidade para o Brasil nesse contexto é que o mundo todo está envelhecendo e, portanto, todos estão em busca de inovação nesse campo. “É aí que está a chance de o país, sobretudo na indústria, apresentar-se competitivo. É diferente de outras indústrias maduras: a do cuidado é infante em todo o planeta”, diz Felix. A estratégia que o pesquisador defende é a do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e do Cuidado, uma política industrial que tenha como alvo a exportação de algum produto para o cuidado. “As famílias, com mais idosos, alteram completamente a cesta de consumo, e o país precisa ser bom em algum produto que passa a integrar essa cesta.”
É preciso virar a chave
Antes de qualquer estratégia, no entanto, Camarano reforça que um futuro promissor na era da longevidade passa primeiro por uma mudança de mentalidade. É preciso desnaturalizar a questão de que o cuidado tem de ser feito pela família. E, quando se fala em família, entenda-se mulheres. “Vou dar só um exemplo. Um trabalho que a gente fez no Ipea, há uma década, mostrou que as mulheres que não tinham nenhuma renda, mas estavam cuidando de maridos ou pais, poderiam gerar uma renda de 1,4 bilhão de reais por mês! Ou seja, é enorme o potencial econômico que está se perdendo. Então, mudar essa visão cultural do cuidado é o primeiro passo.”
Esse é exatamente o objetivo primário da Política Nacional de Cuidados, sancionada em dezembro, de cuja conceituação a pesquisadora do Ipea participou. As diretrizes visam garantir a equidade no acesso ao cuidado, a autonomia das pessoas que necessitam de cuidados, a valorização da mão de obra, o estímulo à inovação e ao desenvolvimento de tecnologias para o setor e a corresponsabilidade social entre Estado, família, setor privado e sociedade civil. Um avanço histórico que promete desatar alguns nós e abrir caminhos para o futuro da economia do cuidado no Brasil.
Tecnologia não é o único elemento para o desenvolvimento da economia do cuidado. Ações simples e de baixo custo têm feito a diferença na vida do idoso e de sua família. As redes de farmácias Raia e Drogasil, por exemplo, da RD Saúde, têm o Dose Certa, um serviço em que o cliente recebe seus medicamentos já separados por dose e com indicação do horário em que cada um deve ser tomado. “Isso ajuda na organização diária, evitando que a pessoa esqueça, tome no horário errado ou a dose incorreta”, explica a empresa.
Na esfera pública, também há iniciativas interessantes. É o caso da Madu, um projeto do Conselho Estadual do Idoso de São Paulo, em parceria com o Instituto Tellus e a Brasilprev. Trata-se de uma plataforma de conteúdo sobre o envelhecer, lançada pela Rede Bem-Estar, que traz informações relevantes para a população mais velha e um inovador programa educativo para gestores que trabalham com o cuidado de idosos.
Quando se fala em assistência à saúde do público 60+ no Brasil, a telemedicina certamente tem hoje papel central. Esse instrumento crucial dentro da saúde digital, regulamentado durante a pandemia, vem redefinindo o fornecimento de cuidados geriátricos ao tornar o acesso mais democrático e eficiente.
Os benefícios da tecnologia são claros: facilita o acesso a consultas médicas, evitando que o idoso precise se deslocar; permite o monitoramento constante de doenças crônicas, por meio de dispositivos de acompanhamento remoto; elimina filas e senhas; reduz o contato físico e, assim, o risco de exposição a doenças; facilita o atendimento integrado (paciente, médicos, cuidadores e família); possibilita o acompanhamento psicológico regular, importante para a saúde mental dos mais velhos; alcança regiões desassistidas; e ainda reduz custos para pacientes e instituições de saúde.
Em 2023, segundo a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), mais de 30 milhões de atendimentos médicos foram realizados a distância no país, um aumento de 172% em relação ao período de 2020 a 2022. E a expectativa é de que a adesão continue crescendo nos próximos anos, especialmente entre os pacientes maduros. Por isso, a sinergia entre desenvolvedores e o setor de saúde para aprimorar e expandir o uso da tecnologia é essencial.