Ricardo Hausmann: professor em Harvard e criador do Growth Lab (Martha Stewart/Divulgação)
Publicado em 20 de março de 2025 às 06h00.
Última atualização em 20 de março de 2025 às 10h24.
As tarifas comerciais impostas por Donald Trump a outros países vão gerar danos severos à economia dos Estados Unidos de várias formas, avalia o economista Ricardo Hausmann, professor na Universidade Harvard. O problema já começa ao gerar incertezas: na prática, Trump rasgou o acordo comercial USMCA, de 2018, que ele mesmo havia assinado, ao impor taxas contra México e Canadá.
“A ideia dos acordos de livre-comércio é proporcionar previsibilidade sobre as condições futuras do comércio. Muitos estudos acadêmicos sugerem que é essa previsibilidade que gera os benefícios desses acordos”, diz Hausmann.
Ele avalia que, se as tarifas forem de fato implantadas, haverá efeitos “devastadores” para a indústria americana. “Os produtos cruzam fronteiras várias vezes durante a produção. E, se toda vez houver um acréscimo de 25%, isso se acumulará até um nível insustentável”, afirma.
Hausmann dá aulas de crescimento econômico e desenvolvimento em Harvard. Ali, criou em 2006 o Growth Lab, que pesquisa como estimular o avanço econômico ao redor do globo. Nascido na Venezuela, ele foi ministro do Planejamento do país de 1992 a 1993, antes do governo de Hugo Chávez, e economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 1994 a 2000.
Na conversa com a EXAME, ele faz avaliações sobre a economia do Brasil e da Venezuela e traz respostas para uma pergunta difícil: por que a América Latina ficou para trás no desenvolvimento econômico nas últimas décadas?
Como as tarifas de Trump, se implantadas, podem afetar o crescimento dos países emergentes, especialmente do Brasil?
A característica fundamental do governo Trump é a imprevisibilidade. Um dia ele anuncia tarifas sobre o Canadá e o México, e no dia seguinte as retira. Não está claro o que vai acontecer com a política comercial dos Estados Unidos, mas ela se tornou muito mais incerta. As empresas vão reagir ao fato de que a política comercial é tão imprevisível que ninguém sabe o que vai acontecer. Isso, por si só, terá impacto no comércio e nas decisões de investimento, o que é um pouco o que Trump busca. A ideia dos acordos de livre-comércio, como o USMCA [entre EUA, México e Canadá], é proporcionar previsibilidade sobre as condições futuras do comércio. Muitos estudos acadêmicos sugerem que é essa previsibilidade que gera os benefícios desses acordos comerciais. Assim, ao ameaçar tarifas sobre o México e o Canadá, mesmo que esses dois países tenham um tratado com os EUA, Trump mostra que o tratado que eles assinaram não vale o papel em que foi escrito. Por meio de uma decisão presidencial, é possível simplesmente aumentar as tarifas em 25%. O mundo sob Trump será dominado pelas consequências da imprevisibilidade do comportamento dos EUA, e isso trará muitas consequências.
O senhor tem uma teoria sobre complexidade econômica. Como essas guerras comerciais podem afetar a complexidade da economia global?
Acho que Trump não vai levar adiante essa política comercial, porque vai perceber rapidamente que os efeitos são devastadores. Os países não fabricam mais um produto sozinhos. Um produto é feito por uma combinação de países. Seja na montagem de um iPhone, seja na de um Galaxy, as peças vêm de muitos lugares diferentes. Os EUA já não sabem mais fabricar os chips. Esses produtos exigem a combinação da produção de muitas empresas. Um carro tem mais de 50.000 peças. Um avião tem milhões. Se você impõe tarifas de 25% sobre essas cadeias de valor, elas vão entrar em colapso, porque esses produtos cruzam fronteiras várias vezes durante a produção. E, se toda vez houver um acréscimo de 25%, isso se acumulará até um nível insustentável.
O governo Trump promete fazer uma deportação em massa de imigrantes. Como isso poderá impactar a economia dos Estados Unidos?
Houve um boom na imigração porque o mercado de trabalho dos EUA estava superaquecido. O país passou por um período em que havia mais de duas vagas para cada desempregado. Havia uma demanda excessiva por mão de obra e, quando perceberam que o mercado de trabalho dos EUA estava aquecido, todos tentaram entrar. Foi por isso que os EUA experimentaram esse boom na imigração e uma aceleração no crescimento econômico. Se agora, além de assustar as pessoas para não entrarem nos EUA, o governo também está expulsando imigrantes, isso significa que haverá uma mudança drástica. Com menos mão de obra disponível, o crescimento será reduzido e a inflação vai acelerar. O efeito das tarifas comerciais será semelhante. Elas vão dificultar o acesso das empresas a insumos, tornando a produção mais difícil. Com isso, o crescimento diminui e a inflação acelera. Acho que ainda estamos no início desse processo, mas é para onde essas políticas estão nos levando.
Nicolás Maduro, presidente da Venezuela: governo baixou os salários dos servidores públicos para poucos dólares por mês (Pedro Rances Mattey/Anadolu/Getty Images)
Além da inflação, há o desafio fiscal. Nos EUA, a relação entre dívida e PIB tem crescido rapidamente nos últimos anos. Esse é um tema muito relevante também no Brasil. Como o senhor vê a possibilidade de os governos equilibrarem o aumento dos gastos para estimular o crescimento e, ao mesmo tempo, manter alguma austeridade fiscal em seus países?
Os EUA estão claramente conduzindo uma política fiscal insustentável. Normalmente, esperam-se déficits elevados em momentos de crise. Em uma recessão, a arrecadação de impostos cai, os gastos com seguro-desemprego aumentam, e isso resulta em um déficit maior. Mas, em uma fase de crescimento, quando o PIB está subindo, o desemprego está baixo e a arrecadação tributária está aquecida, espera-se que o déficit fiscal diminua. É estranho que os EUA estejam tendo déficits recordes no auge do ciclo econômico, na casa dos 7% do PIB. Estão em uma trajetória claramente insustentável.
Como avalia os planos de Trump para conter esse déficit?
O governo Trump propôs cortes em impostos de 4 trilhões de dólares e cortes de gastos de cerca de 2 trilhões de dólares. Na prática, estão aumentando o déficit fiscal em 2 trilhões de dólares na próxima década. Eles herdaram um déficit fiscal insustentável e estão ampliando o problema. Não ouvi nenhuma estratégia clara para reduzir o déficit, porque eles continuam comprometidos com a redução de impostos para empresas e pessoas físicas de alta renda. Esse é um dos principais itens da agenda, mas não há um plano correspondente para reduzir os gastos a fim de compensar essas perdas de receita. Os EUA provavelmente continuarão nos próximos anos com essa política fiscal insustentável, mas não sofrem as mesmas consequências que outros países. No Brasil, quando o mercado percebe que a política fiscal é insustentável, os juros sobem, e esse aumento coloca o país em uma dinâmica perigosa. Foi o que vimos quando Guido Mantega era ministro da Fazenda e Dilma Rousseff era presidente: notícias ruins sobre a economia geravam preocupação com o déficit, levando a uma alta dos juros, o que, por sua vez, piorava ainda mais a economia e o déficit fiscal. Esse círculo vicioso tem sido uma grande preocupação nos últimos meses no Brasil.
Fazendo um mergulho mais aprofundado no Brasil, qual é a sua avaliação da nossa economia? Qual deveria ser o caminho para um país como o Brasil alcançar o desenvolvimento econômico?
Nos últimos 20 anos, o Brasil tornou-se uma superpotência na agricultura e em minerais, mas um ator muito menor na indústria. Esse declínio está relacionado à limitada inovação dentro do país. Houve uma revolução tecnológica na agricultura e em setores como as fintechs, mas não vimos o Brasil avançar em atividades mais complexas e de alta tecnologia da mesma forma que Coreia do Sul, Taiwan e outros países conseguiram. Lembro de ter escrito um artigo em 1980 com um colega chileno sobre os NICs [newly industrializing countries, ou países recentemente industrializados]. O artigo analisava quatro países: Brasil, México, Coreia do Sul e Taiwan. Naquela época, o Brasil tinha uma renda per capita maior do que a da Coreia e de Taiwan e estava mais avançado economicamente. Hoje, a diferença é gigantesca, tanto em termos de renda per capita quanto de inovação. O Brasil precisa se perguntar por que não conseguiu passar pela mesma transformação produtiva e tecnológica que aconteceu no Leste Asiático. O Brasil precisa fazer essa reflexão — e isso não é só uma questão de governo, mas também do setor privado. Por que não vimos um setor privado mais criativo? Apesar de termos universidades de elite, como a PUC-Rio, a Fundação Getulio Vargas e as universidades federais em vários estados, por que não houve mais dinamismo econômico? Por que não conhecemos empresas brasileiras globalmente competitivas além da Vale e dos gigantes do agronegócio?
A inteligência artificial pode ajudar o Brasil e outros países em desenvolvimento a avançar na corrida por novas tecnologias ou pode ampliar essa distância?
Ainda não sabemos. A IA tem o potencial de permitir que o Brasil dê um salto tecnológico, porque torna mais acessível o conhecimento disponível no mundo. Isso deveria beneficiar mais os países que têm menos conhecimento acumulado. Por outro lado, é necessário ter capacidade para usar essas novas ferramentas e aproveitá-las ao máximo. Isso ainda precisa ser testado. Até que ponto as empresas no Brasil conseguirão se reinventar para tirar o máximo proveito dessas tecnologias?
Subúrbio de Lima, no Peru: desigualdade na América Latina é fruto da falta de inovação privada (jan Sochor/LatinContent/Getty Images)
Como o senhor vê a situação econômica da Venezuela? É possível dizer que tem havido uma melhora?
A Venezuela hoje é uma fração minúscula do que já foi. O PIB caiu cerca de 75%, o que significa que a economia de 12 ou 13 anos atrás era quatro vezes maior do que é agora. Esse colapso econômico ainda não foi revertido. Oito milhões de pessoas deixaram o país, e o fluxo migratório ainda é de saída, apesar das dificuldades nos países de destino. A Colômbia tem cerca de 2,5 milhões de venezuelanos, o Chile tem 700.000, e esses números continuam crescendo. Esse é o primeiro indicativo de que os próprios venezuelanos não acreditam que a situação tenha melhorado significativamente. É verdade que a inflação caiu. Passamos por um período de hiperinflação que atingiu aproximadamente 2,2 milhões por cento. Isso não ocorre mais porque o governo reduziu drasticamente os gastos públicos, essencialmente pagando salários irrisórios a funcionários públicos — algo entre 5 e 10 dólares por mês — e reduzindo a aposentadoria mínima para 3 dólares mensais. As universidades foram devastadas porque não conseguem manter professores recebendo apenas 10 dólares por mês. O governo perdeu de forma massiva as eleições de 28 de julho. Eles fraudaram as eleições e aumentaram dramaticamente a repressão. De lá para cá, mais de 2.000 pessoas foram presas. Atualmente, há pessoas sendo condenadas a 15 anos de prisão por um tuíte. Não só a situação econômica é um desastre, mas a liberdade também.
Como avalia a posição do Brasil no cenário internacional?
O Brasil tem um peso muito menor do que poderia ter como potência internacional. Parte disso se deve ao fato de que o país expressa muita indignação em relação a acontecimentos globais, mas essa indignação parece ser proporcional à distância dos eventos. O Brasil se posiciona de forma contundente sobre questões no Oriente Médio, por exemplo, mas é relativamente silencioso quando se trata da sua vizinhança. Um país não será respeitado na arena internacional se não conseguir desempenhar um papel construtivo em seu próprio entorno. Embora o Brasil seja uma democracia consolidada internamente, sua política externa nem sempre reflete esse compromisso democrático.
O Brasil sediará a COP30 neste ano. Como o senhor acha que o país pode conseguir resultados concretos nessa área, especialmente sobre financiamento para enfrentar as mudanças climáticas?
Primeiramente, eu pensaria no financiamento climático de outra forma. Para que o mundo reduza as emissões, será necessário um conjunto enorme de mudanças. Será preciso eletrificar tudo o que puder ser eletrificado e garantir que essa eletricidade seja gerada de forma limpa. Para isso, o mundo precisará de muitas coisas: painéis solares, turbinas eólicas, baterias, entre outros. A questão é: quem vai produzir esses equipamentos? Eu gosto da ideia de que os países adotem uma estratégia de crescimento verde, que não significa apenas crescer sem emitir poluentes, mas crescer fornecendo ao mundo o que ele precisa para se descarbonizar. Quanto mais o mundo tentar reduzir suas emissões, mais esses países venderão e mais suas economias crescerão. Essa abordagem é essencial para conseguir o engajamento dos países em desenvolvimento. No caso do Brasil, a estratégia de crescimento pode ser atrair indústrias intensivas em energia porque o país tem uma vantagem comparativa em energia renovável. Algumas pessoas chamam isso de “power shoring”, e eu gosto muito desse conceito.