Michel Doukeris, CEO global da maior cervejaria do mundo, a AB InBev (Paulo Mumia/Divulgação)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 28 de agosto de 2025 às 06h00.
O catarinense Michel Doukeris comanda há quatro anos a cervejaria AB InBev, um gigante com 144.000 funcionários e receitas de 60 bilhões de dólares ao ano. Nesse período, o valor de mercado da companhia dona de marcas como Corona e Stella Artois variou até 60% para cima ou para baixo, mas se mantém na casa dos 120 bilhões de dólares. Sinal de que a volatilidade virou um novo normal num mundo com amea-ças e oportunidades crescentes. Doukeris assumiu ainda na pandemia, depois precisou lidar com mudanças no hábito de consumo da geração Z, com polarização política, com tarifaço. Para dar conta de comandar um gigante num mundo cada vez mais fragmentado, ele viaja 180 dias por ano, em visitas a funcionários, clientes, políticos. Em entrevista à EXAME na sede da Ambev, em que é presidente do conselho de administração, ele afirma que precisa ter a humildade de aprender para seguir atualizado.
O que entra na agenda do CEO de um gigante global para ver na ponta aonde o mundo está indo?
Minha agenda é extremamente organizada. A do ano que vem está 100% programada e a dos próximos três anos já tem um terço programada. Não é exagero, é verdade. Para além dos compromissos grandes, e estou aqui para a reunião do conselho da Ambev, sempre incluo nas viagens outras prioridades. Elas podem ser diferentes por país, mas têm um conjunto de coisas que são muito parecidas. Uma das coisas mais importantes é falar com as pessoas. Nesta viagem ao Brasil tínhamos uma reunião grande da liderança e passei 3 horas conversando com as pessoas. Depois de 30 anos conversando 5 minutos com dez pessoas por dia, consigo sentir o clima do escritório, do país. Também sempre gasto um pedaço do meu tempo para entender o que está acontecendo com os consumidores, quais são as tendências, o que está funcionando, o que não está. Temos essa tradição, por sermos um negócio de bens de consumo, de visitar supermercados, bares, restaurantes, conversar com o dono, com o gerente, ver se a prateleira tem os nossos produtos, se nossa inovação está funcionando.
Como esse seu olhar pessoal impacta a definição de ações?
Vou dar um exemplo. Depois de muitos anos vim passar umas férias no Brasil, em Garopaba, com a família. Um dia eu estava andando numa saída de praia e tinha um restaurante com uma fila. Decidi ir lá naquela fila para ver o que estava acontecendo. Eram 11h30 e eles estavam vendendo fora de hora uma de nossas cervejas, a Stella Artois sem glúten. Fui falar com o dono e com as pessoas. Disseram que todo mundo estava querendo. No mesmo dia liguei para a nossa turma: está vendendo, as pessoas adoraram, se preparem porque já deu certo. Tentamos entender o contexto macro, mas precisamos ir lá embaixo, no bar, no restaurante, para ver onde o negócio está acontecendo.
Você viaja quantos dias por ano?
Na média, 180 dias por ano. Parece que a pandemia ficou lá atrás, né?
O mundo voltou a demandar essa presença física...
Nem na pandemia eu parei. Durante a pandemia, fiz uma rotina de visitas às fábricas, que continuaram operando na maior parte do mundo. Implementamos um padrão nos Estados Unidos, de segurança das pessoas, que foi copiado pelas agências do governo. O que eu achei que era minha parte foi visitar todas as fábricas para ter certeza de que o protocolo estava implementado, e que nós estávamos fazendo tudo que podíamos fazer. Fiz mais de 50 viagens na pandemia.
O que as viagens mais recentes têm mostrado de tendências para o mercado de bebidas?
Nosso negócio principal é cerveja, mesmo que no Brasil tenhamos um negócio enorme de não alcoólicos. Mas no mundo nosso principal negócio é cerveja. É e vai conti-nuar sendo. Investimos em coisas que estão acontecendo dentro e ao redor da categoria de cerveja. O consumidor de hoje quer socializar, se divertir, fazer esporte, assistir a série até mais tarde, passear. Ele não é um consumidor que trabalha, vai ao bar e volta para casa. Ele tem um repertório mais amplo. As escolhas que temos feito nos últimos anos de inovar em nosso portfólio, com líquidos com menos calorias, sem açúcar, glúten free, sem álcool, têm aberto uma quantidade enorme de novas portas. No Brasil, glúten free e sem álcool são os carros-chefe. No outro lado do mundo, na Coreia do Sul, cerveja sem açúcar é uma tendência. Nos Estados Unidos, com menos carboidratos e calorias. Tudo dentro de uma plataforma que chamamos de “escolhas balanceadas”. É um negócio que já tem mais de 5 bilhões de dólares de faturamento e vem crescendo duplos dígitos, incrementando ocasiões e oportunidades de as pessoas interagirem com as marcas.
Como a inovação digital entra nessa estratégia?
No Brasil temos um produto digital de entrega de cerveja gelada em 30 minutos, o Zé Delivery. Digitalizamos também o nosso contato com os pontos de venda. Na minha época tínhamos um livro de rota que mostrava o que os donos de cada bar compravam. Hoje está tudo num app, o Bees, e o varejista faz o pedido direto. Temos mais empresas parceiras, o que faz o varejista ter mais visibilidade do mix, e faz ele ser mais competitivo, inclusive com oferta de crédito. Os clientes que estão com a gente nesse aplicativo crescem mais do que os que não estão. Assim, todos crescem.
Bar na Coreia do Sul: o consumo de cervejas sem açúcar é uma das tendências que ganham força (Matthew J. Lee/The Boston Globe/Getty Images)
Dentro desse exemplo, qual é a lógica de inovação? Qual é a estratégia para decidir o que fazer e o que não fazer?
Nossa primeira ambição é liderar e expandir a categoria de cerveja, porque é importante para o ecossistema. Temos agricultores, fábricas, distribuidores, varejistas. O segundo pilar é digitalizar o ecossistema para criar mais oportunidades de receita. Nesse cenário vem o Zé Delivery, porque você pode estar em casa vendo um jogo e não vai sair para comprar. Mas pode pedir para mim e eu direciono para o bar. O bar cria negócio, nós também. Os produtos de tecnologia são para reforçar o nosso ecossistema. Vale também para nosso parceiro, que pode ser uma empresa de chocolate ou de laticínios. A terceira frente de inovação é o que chamamos de bebidas prontas para beber, como Skol Beats. Ao redor do mundo temos algumas variações. Lançamos agora uma cerveja com suco de limão, por exemplo. Temos inovado ao redor do nosso core. Essa é a filosofia.
Sei que é um tema caro para você falar sobre geração z. Muitas pesquisas mostram que esse consumidor bebe menos. Qual é sua visão para o longo prazo?
A geração Z é importante para mim por várias razões, inclusive porque tenho dois Zs em casa. Tenho uma filha e um filho de 23 e 20 anos. Há uma série de estudos sobre esses consumidores. Eu sempre lembro as pessoas de que uma das coisas fundamentais que têm definido essa geração é a pandemia. Essa geração, de 20 a 25 anos, passou de dois a três anos trancada num quarto no começo da vida adulta. Depois, começou a trabalhar em home office ou em sistema híbrido. Minha filha esses dias me perguntou como se comportar numa happy hour do trabalho. Então muito do que chamamos de habilidades sociais, que eu e você tivemos na prática, eles não puderam ter. Eles vão menos a restaurantes e bares, mas adoram ir a eventos de música e de esportes, e estão interagindo com categorias em tempos diferentes. O que temos aprendido é que, à medida que amadurecem, começam a trabalhar, a namorar, os comportamentos vão se normalizando. De qualquer forma, uma das grandes oportunidades é a cerveja sem álcool, que tem uma participação nesse público muito maior do que já teve no passado.
O mercado de cerveja atingiu o pico?
Os números que vemos mostram que o mercado de cerveja vai continuar crescendo. E que a cerveja está avançando em ocasiões alcoólicas. No Brasil, a projeção é muito parecida e ajudada pela demografia: população, economia e renda crescentes. Se as pessoas tiverem condições financeiras, vão consumir em mais ocasiões. E essas inovações que trazemos, com escolhas balanceadas e produtos premium, abrem mais ocasiões de consumo. O Brasil ainda é um país onde muito consumo acontece na sexta e no sábado. Em países mais desenvolvidos você vai ver que as pessoas jantam em casa e tomam a sua Stella Artois, ou fazem um fim de tarde com um grupo de amigos e tomam sua Leffe ou sua Corona. São muitas ocasiões que ainda não estão exploradas ao redor do mundo.
Como é ser CEO de uma empresa com exposição a tantos países num mundo que se reorganiza?
Ser CEO de uma empresa global e poder acompanhar tudo que está acontecendo é um grande privilégio. Tenho a oportunidade- de estar um dia no Brasil e falar com um dono de bar que vive a economia local, e no dia seguinte estar na Europa ou nos Estados Unidos e sentar com um político que está discutindo novas regras de comércio ou as prioridades para um país. É um privilégio ver de maneira abrangente a economia. Os impactos geopolíticos são relevantes, mas nosso produto é local: 98% do que vendemos ao redor do mundo produzimos localmente. Temos fazenda de malte no Brasil, maltarias, fábrica de lata, de garrafa.
A AB InBev e a Ambev são conhecidas por uma cultura muito focada em eficiência e meritocracia. Nos últimos anos vimos que funcionários passaram a valorizar outros atributos. A cultura da empresa mudou juntamente com o mundo?
Eu sempre achei que a definição do que era cultura da Ambev foi exagerada para um ângulo. É uma cultura de desempenho, e não de exageros, como foi dramatizada nos últimos anos. Uma das coisas mais bacanas no Brasil foi a evolução da Ambev como uma empresa que aprende tudo e que não sabe tudo. Sabemos o que fazemos bem e sabemos o que não. E gostamos de aprender. Nossa empresa cresceu ao longo dos anos de maneira inorgânica. Comprávamos uma empresa aqui, comprávamos uma empresa lá. Hoje a gente trabalha para crescer organicamente. E isso demanda aprender com o consumidor, com a dona Maria do ponto de venda, aprender se o caminhão está rodando bem. Ao redor do mundo nossos pontos de venda nos dão feedback toda semana. A colaboração é muito presente, falamos de meritocracia de times, e não individual. Estou aqui há 30 anos e, se tivesse de escolher de novo, faria a mesma escolha. Uma empresa com valores muito éticos e muito sólidos. Claro que precisamos trabalhar todo dia para manter isso.