Igor Morais, da Kings: “Se ficar inviável importar, vamos fabricar nos Estados Unidos. Estamos preparados para tudo” (Leandro Fonseca /Exame)
Publicado em 28 de agosto de 2025 às 06h00.
Na terça-feira, 8 de julho, o clima era de contagem regressiva na sede da Kings Sneakers, no Bom Retiro, tradicional reduto têxtil de São Paulo. Uma das maiores do país no varejo de moda urbana, a rede estava preparando os últimos detalhes para estrear um comércio eletrônico com base nos Estados Unidos. Seria a primeira incursão internacional de um negócio de 350 milhões de reais de faturamento no Brasil. O plano era manter um estoque na Terra do Tio Sam e vender peças da marca própria, fabricadas no Brasil.
Tudo corria conforme o script, até chegar o presidente americano, Donald Trump, e anunciar uma tarifa de importação de 50% sobre produtos brasileiros, na quarta-feira 9 de julho. De uma hora para outra, o fundador da Kings, Igor Morais, precisou repensar a estratégia que levou mais de um ano para ser montada. Não só ele está revendo planos: 3.650 micro e pequenas empresas brasileiras exportaram para o mercado americano em 2024, segundo o governo federal. Boa parte dessa turma está fazendo contas e mudando a estratégia para sobreviver na nova e incerta realidade do tarifaço.
Em vigor desde o início de agosto, o tarifaço dos Estados Unidos poupou mais de 700 itens, mas ainda atinge setores inteiros, da indústria calçadista a um grande polo moveleiro. Numa tentativa de minimizar as dores de pequenas e médias empresas, o governo federal lançou na semana passada o plano Brasil Soberano, com 30 bilhões de reais destinados a aliviar o caixa das PMEs por meio de crédito a juros mais baixos e adiamento na cobrança de alguns impostos. A ajuda é bem-vinda, mas temporária. Sem um acordo em vista entre os governos de Brasil e Estados Unidos, o risco é de uma perda de competitividade fatal para muitas PMEs brasileiras com operações (ou planos de operar) nos Estados Unidos.
Enquanto as conversas entre os dois países continuam a passos lentos, os empreendedores estão arregaçando as mangas. Em busca de adaptação, há quem opte por fabricar nos Estados Unidos, como planeja Morais, ou reduzir margens e buscar novos mercados. A seguir, cinco pequenas e médias empresas brasileiras contam os caminhos adotados para enfrentar o tarifaço.
Para algumas empresas brasileiras, o tarifaço de 50% sobre produtos exportados para os Estados Unidos redesenhou o mapa da internacionalização. A rota que parecia natural — produzir no Brasil, embarcar e distribuir no mercado americano — deu lugar a um caminho mais curto: cruzar a fronteira com a fábrica. De pescados a moda urbana e cosméticos, o diagnóstico foi o mesmo: se não dá para escapar da tarifa na alfândega, melhor evitá-la já na origem, produzindo direto em solo americano. É, de certa forma, o real objetivo de Donald Trump ao tarifar produtos estrangeiros: garantir a volta das indústrias para os Estados Unidos.
Quem segue essa lógica é a pernambucana Noronha Pescados. Fundada em 1980, a empresa cresceu exportando peixe empanado do Recife. A nova tarifa coloca o modelo por água abaixo. A solução encontrada pelo CEO Guilherme Blanke foi deslocar o processamento para os Estados Unidos, em fábricas de terceiros nos estados de Massachusetts e da Geórgia. A matéria-prima principal, o peixe, é all-American e transportada direto do Alasca. Frutos do mar como camarão e cortes de salmão vêm de países com alíquotas de importação inferiores às brasileiras, como Equador e Chile (ambos taxados com 10%). “Nosso projeto segue firme. Em vez de processar o peixe no Brasil e exportar, vamos levar a matéria-prima direto para os Estados Unidos, onde será processada e distribuída”, diz Blanke. A operação começa com 1.000 toneladas mensais, e a meta é chegar a 10.000 em cinco anos, com portfólio que pode incluir azeite, pizza congelada e até açaí, conforme as condições tributárias. O movimento preserva a operação brasileira, amplia a agilidade logística e prepara o terreno para um segundo passo: abrir, em até dois anos, uma planta própria no país.
A lógica também chegou à Kings Sneakers, rede de moda urbana com sede no Bom Retiro, em São Paulo. Às vésperas do lançamento do site americano, Igor Morais, fundador da marca, comemorava o envio da primeira leva de estoque, despachada para os Estados Unidos antes da entrada em vigor da tarifa. Agora, já projeta fabricar em território americano parte das peças para manter a competitividade. “Se ficar inviável importar, vamos produzir lá. Já temos parceiros. Estamos preparados para tudo. Só não dá para parar agora”, afirma. O investimento inicial na operação foi de 500.000 dólares. A meta é faturar 100.000 dólares até o fim de 2025 e meio milhão até 2026, abrindo a primeira loja física no país.
Na Aegisderma, marca de cosméticos criada em Nova York e fundada pela maranhense Cleo Pillon, a medida levou a uma decisão ainda mais radical: encerrar a produção brasileira. Até então, a empresa fabricava no Brasil para atender consumidores brasileiros nos Estados Unidos. “Com a alta carga tributária, a complexidade logística e agora a tarifa de 50%, tornou-se insustentável manter a operação. Optamos por transferir tudo para território americano”, explica. A mudança, segundo Pillon, garante competitividade, reduz custos e dá fôlego para acelerar a expansão internacional.
Líder no mercado brasileiro de açaí, a Frooty projeta receita de 500 milhões de reais para 2025. Dois terços desse valor vêm do Brasil, onde a marca tem mais de 40% de participação no varejo e presença em cerca de 20.000 pontos de venda. O restante vem de exportações para 21 países. Desse total, uma fatia de 40% tem como destino os Estados Unidos.
Durante visitas frequentes ao mercado americano, onde a companhia atende cerca de 100 clientes e fatura 25 milhões de dólares ao ano, o CEO, Fábio Carvalho, se deparou com um novo obstáculo: o tarifaço de 50% imposto pelo governo Trump sobre produtos brasileiros. A medida atinge tanto a polpa de açaí quanto os produtos acabados. “Estamos falando de um produto saudável e que só é encontrado no Brasil. Com essa taxação, não há como absorver o custo; teremos de repassar o aumento ao consumidor americano”, afirma Carvalho. Segundo ele, a medida deve encarecer cerca de 35% o preço ao consumidor final. O mercado americano é estratégico e não substituível no curto prazo, diz o executivo. A relação com os Estados Unidos se intensificou há dois anos, quando a companhia adquiriu a Makai, segunda maior marca de food service de açaí no país. Metade do açaí vendido pela Frooty nos Estados Unidos é processada na Makai, mas nem os produtos finalizados em solo americano foram poupados das tarifas. Com três fábricas e capacidade para processar 100 toneladas de açaí por dia, o desafio agora é equilibrar crescimento e rentabilidade em um cenário de custos mais altos e margens pressionadas, sem abrir mão do maior mercado importador de açaí do planeta. “Estamos revisando formatos de produto, posicionamento de preço e canais para minimizar perdas. O objetivo é continuar relevante no mercado americano e preservar os relacionamentos comerciais”, diz Carvalho.
Em maio, ao ouvir o anúncio do tarifaço de Trump sobre o Brasil, a empresária Marly Fagliari já se antecipou para não perder a clientela — e a estratégia começou no porto. “Conseguimos embarcar três contêineres antes da implementação da tarifa, garantindo preços antigos para nossos clientes”, diz a sócia-fundadora e VP de negócios da Hydro Pet-Society, empresa que em 2024 faturou 30 milhões de dólares (cerca de 165 milhões de reais) fabricando e exportando produtos para o setor pet, como xampus e outros itens de estética animal. “De 2019 a 2024, a nossa empresa cresceu 120%. A pandemia foi muito interessante para o setor pet, que apresenta um crescimento bem expressivo desde 2020”, diz Fagliari, que traçou um novo plano para continuar crescendo, mesmo com o tarifaço americano.
Com a medida de Trump decretada no final de julho e seus produtos na lista de itens taxados, Fagliari teve de apostar em mais uma medida: criou uma tabela com novos preços para os Estados Unidos, absorvendo, em parte, o tamanho da conta. “Renegociamos a margem de lucro com os distribuidores para absorver parte do impacto; afinal, os Estados Unidos são o nosso principal mercado internacional”, afirma Fagliari, que atualmente tem 30% das exportações voltadas para o país americano.
Com sede em Guarulhos, na Grande São Paulo, a Hydro Pet-Society foi criada pela empresária junto com o marido, em 2004. Desde o primeiro ano de atividade a empresa exporta parte da operação, e os clientes americanos foram os primeiros fora do Brasil. Hoje, a marca produz 5 milhões de unidades por ano, já está em mais de 70 países, e a fundadora quer mais. A aposta deste ano está em olhar para os novos mercados internacionais, como Ásia, Europa e América Latina. “Em junho, fechamos o primeiro contrato com distribuidores na China e no ano passado abrimos a nossa filial no Japão”, diz a empresária, que tem os Estados Unidos como o mercado número 1, e logo depois a Colômbia.
Para 2025, o objetivo é manter o ritmo de expansão. Segundo Fagliari, a empresa deve crescer 30% no mercado americano e 15% no faturamento global. “O tarifaço nos desafiou, mas já estávamos preparados para continuar crescendo, inclusive nos Estados Unidos.”
O tarifaço imposto pelo governo Trump tem levado empresas a repensar estratégias globais. Para algumas, a alternativa foi esperar. É o caso da B.O.B, marca brasileira de cosméticos sustentáveis, que está revendo sua operação nos Estados Unidos — mercado que representa 25% de seu faturamento. “A nova taxação inviabiliza a competitividade de pequenas empresas no mercado digital, altamente sensível a preço”, afirma o cofundador e CEO Victor Lichtenberg. Apesar do impacto, a B.O.B busca alternativas para manter presença em solo americano, como parcerias com grandes varejistas e a criação de lojas próprias no formato de quiosques. A meta é preservar o crescimento internacional, mas com passos mais lentos e ajustes finos ao novo cenário econômico.
Em meio à taxação de até 50% sobre produtos brasileiros, a marca mineira de cafeterias Cheirin Bão continua com o plano de abrir em outubro a primeira unidade nos Estados Unidos, mais precisamente em Boston, cidade com uma das maiores comunidades de brasileiros por lá. “Vamos entender o novo cenário e dar passos um pouco mais lentos para preparar o terreno para que as inaugurações sejam bem-sucedidas”, diz o CEO Wilton Bezerra. Com mais de 800 cafeterias em operação e receita de 400 milhões de reais em 2024, a empresa optou por abrir apenas as operações já previstas e postergar novos anúncios até que o mercado se estabilize.
Andreia Quércia e Victor Lichtenberg, CEO da B.O.B: “O tarifaço inviabiliza a competitividade de pequenas empresas no mercado digital” (B.O.B./Divulgação)
Assim que Donald Trump anunciou a medida, a FuelTech, fabricante de tecnologia automotiva para carros de alta performance, colocou em prática um plano emergencial. Em poucos dias, a empresa reestruturou turnos, converteu interfaces de produtos, trabalhou nos fins de semana e despachou seu estoque da fábrica em Porto Alegre para a subsidiária nos Estados Unidos. “Quando começou a dar as tratativas do tarifaço, mudamos a operação: pegamos produtos que estavam prontos para a América Latina e o Brasil, convertemos o idioma, produzimos mais e trabalhamos no fim de semana”, afirma Leonardo Fontolan, CEO da FuelTech. “Hoje, estamos abastecidos nos Estados Unidos para cumprir o plano de vendas até o final do ano.”
Os Estados Unidos são o principal destino dos produtos da FuelTech, representando mais da metade da receita global. Com produtos compactos e de alto valor agregado, a empresa conseguiu acelerar os envios por via aérea e estocar o suficiente para manter as vendas até o fim de 2025. Agora, estuda soluções estruturais, como finalizar parte da produção em solo americano para tentar classificar os itens como made in USA e escapar da tarifa. “Nossa ideia é montar a placa aqui no Brasil e finalizar lá: colocar display, software e acabamento. Se a placa for considerada insumo, e não produto final, pode ser que escape da tarifa”, diz o CEO.
Em paralelo, Fontolan cogita abrir uma operação na Argentina, onde a empresa já tem parceiros comerciais, ou até mesmo em países como Paraguai e Emirados Árabes. “A ideia é agregar valor fora do Brasil e mandar o produto pronto para os Estados Unidos, com outra nacionalidade”, afirma Fontolan.
A tarifa também secou o “mar de oportunidades” da Master Mares, empresa de distribuição de pescados. “Com o tarifaço não temos mais como competir nos Estados Unidos. O preço não fecha”, diz Ricardo Cavalieri, presidente da Master Mares. Criada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo pai de Cavalieri, a empresa faturou 60 milhões de reais em 2024 e conta com 40% do faturamento vindo das exportações para os Estados Unidos — país que desde 2019 era abastecido com espécies como serra, cavala, dourado e badejo. Mas neste ano o empresário vê o mercado se fechar. “Absorvemos os 10% anteriores de maio, mas com o tarifaço de 50% a conta não fecha mais. A exportação para os Estados Unidos era nosso motor de crescimento. Agora precisamos reinventar o negócio”, diz o empresário, que afirma que só para atender os Estados Unidos contratou 50 barcos de pesca. “Se a gente parar com a exportação, esses barcos vão parar também.”
A nova tarifa se soma a outro obstáculo: há oito anos, o setor não exporta para a Europa por falta de certificação sanitária. “As embarcações cumpriram as exigências, mas o governo federal não mandou ninguém para certificar e liberar a exportação”, diz Cavalieri. Com dois grandes mercados fechados, resta buscar novas rotas internacionais, mas a negociação com a Ásia ocorre sob desvantagem. “Como eles sabem que não podemos mandar para a Europa e agora nem mais para os Estados Unidos, impõem o preço”, diz Cavalieri. “Negociar pescado fora está ficando cada vez mais complicado.”