Revista Exame

Sobem as cercas: Tarifaço de Trump traz mudanças profundas ao comércio e abala a globalização

Sistema criado nos anos 1940 e defendido pelos EUA por décadas está sendo desfeito

 (Zansky/Exame)

(Zansky/Exame)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 28 de agosto de 2025 às 06h00.

Última atualização em 28 de agosto de 2025 às 11h01.

O sistema de comércio global adotado nos últimos 80 anos tem como base regras comuns. Algumas delas são simples: um país deve cobrar a mesma taxa de importação de todos os outros, exceto se houver um acordo comercial entre eles, e as medidas comerciais não devem ser usadas como arma de coação.

No entanto, a principal economia do mundo, os Estados Unidos, resolveu abandonar o combinado — em boa medida, elaborado pelo próprio país —, o que ameaça todo o sistema. Para piorar, o presidente Donald Trump tem mudado suas decisões a todo tempo, gerando um clima de incerteza enorme.

“O sistema de comércio global era centrado nos Estados Unidos, mas se tornou difícil para qualquer país sentir-se seguro ao negociar com os EUA”, diz à EXAME Robert Lawrence, professor de comércio internacional na Universidade Harvard. 

“É um país no qual não se pode confiar quando você assina um contrato. Ele faz o que quiser.” E o diagnóstico do futuro do comércio é incerto — mas o mundo buscará novos caminhos. “O sistema global está cada vez mais fragmentado, e os países vão buscar alternativas, especialmente por meio de acordos regionais”, afirma.

A magnitude dessa mudança ainda é difícil de medir, pois se trata de um processo em andamento e com muitas idas e vindas. Alguns movimentos, porém, estão claros. Lawrence afirma que os EUA vêm rompendo acordos de forma sistemática: a tarifa geral de 10% viola acordos comerciais fechados antes, como tratados com a Coreia do Sul e a América Central, por exemplo.

Ao mesmo tempo, alegar uma emergência de segurança nacional para subir as taxas sobre aço, alumínio e itens farmacêuticos também vai contra as regras internacionais usadas até então, assim como impor tarifas para forçar o Brasil a suspender o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O professor pondera, no entanto, que a China também vinha fazendo movimentos nesse sentido, como impor medidas retaliatórias contra a Austrália quando o país questionou a origem da covid-19, em 2021. Além disso, com as novas taxas, a média de tarifa cobrada pelos EUA é a maior em décadas (veja quadro abaixo).

No sistema atual, países que se sentem desrespeitados podem recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC) e pedir uma arbitragem, mas seu sistema de análise está parado. Parte do problema é culpa dos americanos. Desde 2019, o país deixou de nomear juízes para o tribunal de apelação da entidade, o que travou os processos. Trump defende deixar esse sistema de lado e adotar um novo. Agora os Estados Unidos estão agindo como vítima e juiz ao mesmo tempo. Assim, os outros países ficam em posição muito delicada para negociar, pois dependem só das decisões da Casa Branca e, em última instância, da vontade pessoal do presidente, sem ter a quem recorrer. 

Desde que tomou posse, Trump deixou claro que quer mudar o comércio global para favorecer os Estados Unidos, que ele vê como uma vítima da globalização — embora o modelo tenha ajudado o país a se manter como maior potência do planeta há décadas, e os americanos consigam obter produtos do mundo todo a preços relativamente baixos. Como sabem muitos imigrantes, mesmo quem trabalha em funções básicas nos EUA, como limpeza, consegue comprar um carro e um celular do ano em pouco tempo.

Para Trump, no entanto, a abertura comercial ao exterior virou uma ameaça existencial aos Estados Unidos, porque o país viu as indústrias irem embora, o que torna o país incapaz de produzir tudo de que precisa, e gerou um déficit comercial com o restante do mundo.

A lista de críticas do governo americano diz que os outros países ergueram barreiras injustas contra produtos dos EUA e fazem concorrência desleal, por não seguirem os mesmos padrões de direitos trabalhistas e respeito ambiental cobrados de empresas americanas. “O sistema de comércio internacional não deve forçar os americanos a competir com aqueles que usam nosso capitalismo responsável contra nós como uma vantagem competitiva”, disse Jamieson Greer, representante comercial dos Estados Unidos, em artigo no jornal The New York Times, com o título “Por que refizemos a ordem global”. 

Sob Trump, os Estados Unidos estão usando seu poder econômico para forçar os demais países a aceitarem acordos. Em troca de tarifas menores, pode ser preciso abrir totalmente sua economia para produtos americanos e ainda se comprometer a investir bilhões de dólares nos EUA, como aceitaram os líderes do Japão e da União Europeia.

“Em vez do demorado processo de solução de controvérsias, a nova abordagem dos EUA é monitorar de perto a implementação dos acordos e rapidamente reimpor uma taxa tarifária mais alta para não conformidade, se necessário. O presidente Trump reconhece que o privilégio de vender no mercado consumidor mais lucrativo do mundo é uma poderosa ‘cenoura’. E uma tarifa é um formidável ‘bastão’”, disse Greer, citando uma clássica metáfora americana. 

Fábrica da Embraer, em São José dos Campos: aeronaves escaparam do tarifaço contra o Brasil (Leandro Fonseca /Exame)

Para Paolo Pasquariello, chefe do departamento de finanças da Ross School of Business, da Universidade de Michigan, o comércio global deverá caminhar para um “novo normal”, que levará meses ou anos para se consolidar, mas é marcado por três movimentos: menos trocas, com regras mais voláteis e menor qualidade dos produtos. “Trump quer um mundo com muito menos comércio do que o atual, e todas as suas políticas econômicas internacionais visam esse objetivo. À medida que mais e mais barreiras forem erguidas, o nível de comércio mundial diminuirá”, afirma.

Para ele, o fluxo constante de modificações nas regras leva as empresas a “esperar para ver”, o que também esfria as transações. “O Japão e a UE chegaram recentemente a um acordo com o governo Trump, mas esses acordos são vagos, incompletos, repletos de promessas vazias e entendimentos discordantes, deixando muito espaço para interpretação”, afirma.

Nas exportações, é comum que os pedidos sejam fechados meses antes da entrega. Hoje, em poucos dias tudo pode mudar. No começo de julho, por exemplo, o Brasil havia ficado no patamar mais baixo de tarifas, de 10%. No dia 9, foi taxado em 50%. No dia 30, foi divulgada uma lista com quase 700 exceções. Assim, o suco de laranja brasileiro foi de uma tarifa extra de 10% para 50% e depois voltou a 10% em três semanas. No entanto, a isenção vale apenas para o suco, e não para subprodutos, como células cítricas — os gominhos — e óleos essenciais, usados para fazer perfumes. Esses subprodutos exportados aos EUA renderam quase 1 bilhão de reais para produtores brasileiros, e agora a nova taxa deve inviabilizar esses negócios, pelo menos até uma nova reviravolta. 

Mudança na cadeia

Em meio aos acordos, Trump busca se colocar como um defensor das empresas americanas, e canta vitória por abrir mais mercados a elas, mas aqui também os resultados dependerão de outros fatores. “Carros americanos terão tarifas muito baixas na Europa, mas acho que os europeus não gostam muito dos carros americanos”, diz Lawrence, de Harvard.

“Em alguns casos, ele [Trump] pressiona os países a comprarem mais gás natural dos EUA, mas muitos desses países estão tentando descarbonizar suas economias. Mesmo que os países aceitem cotas [de importação], não acho que haverá um aumento massivo das exportações americanas.” Ao mesmo tempo, pontua o professor, os produtos de alta tecnologia exportados pelos Estados Unidos tendem a ter tarifas mais baixas e alta demanda, justamente por não terem concorrentes.

Por outro lado, os fabricantes americanos terão mais dificuldade em acessar matérias-primas estrangeiras. Pasquariello, de Michigan, cita a picape F-150, da Ford, líder de vendas no país e feita de alumínio, para ficar mais leve e economizar combustível. Como os EUA não produzem alumínio e o material foi taxado, o produto ficará mais caro ou terá de usar outro item, como o aço, o que reduzirá sua eficiência. “Os consumidores terão de pagar preços mais altos se quiserem uma picape melhor e mais leve, o que tira dinheiro de outras despesas que eles possam ter, como passar férias no Brasil”, afirma.

Reunião de Donald Trump com Ursula von der Leyen, em Turnberry, Escócia: os EUA apostam em reuniões bilaterais para definir comércio e rejeitam modelo consolidado em Bretton Woods em 1944 (Andrew Harnik/AFP/Getty Images)

Até o começo de agosto, as consequências do aumento de tarifas para os Estados Unidos ainda não haviam chegado com força. Os índices de inflação tiveram oscilações pequenas, em parte porque muitas empresas anteciparam as compras de estoques maiores antes da entrada em vigor das tarifas ou acabaram isentas em meio às várias reviravoltas. A negociação com o principal parceiro americano, a China, segue em andamento e, no começo de agosto, teve sua conclusão adiada mais uma vez, para novembro.

Enquanto Trump avança com seu tarifaço, o Brasil e outros países buscam formas de reduzir os impactos. Até agora, a maior parte deles evitou retaliar Trump e busca ampliar suas parcerias comerciais com outros paí-ses para enviar os produtos que agora terão venda inviável nos EUA, redobrando a aposta na globalização. Os americanos, afinal, respondem por apenas 13% do comércio global, e 87% das trocas não passam pelo país.

“A perda da fé no comércio aberto não é total, e muitos países no mundo continuam a buscar relações mais próximas e mais integração”, diz Lawrence. “Os países podem tentar construir uma ‘OMC menos um’ sem os EUA, embora o país continue na entidade”, afirma. O reforço de laços bilaterais vem sendo discutido pelos líderes globais, e resultados mais concretos devem demorar.

Enquanto isso, os exportadores que se dedicaram por anos a se especializar em atender ao exigente mercado americano pedem ajuda para enfrentar meses difíceis e tentam entender, a cada dia, para onde irão os ventos do comércio global e qual será o papel dos Estados Unidos nele. Dessa resposta dependem empregos, renda e o futuro da globalização. 

Acompanhe tudo sobre:1278Donald TrumpTarifas

Mais de Revista Exame

Rumo aos 50

Brasil é vice-campeão global em tamanho de frota de jatinhos

Pequenas empresas, grandes tarifas: como as PMEs estão se reinventando com o tarifaço

Ela está criando o 'banco do agricultor' direto do WhatsApp — e mira os R$ 15 milhões