No início dos anos 2000, a Nokia era mais do que uma fabricante de celulares: era símbolo de inovação, domínio tecnológico e influência cultural global. Responsável por mais de 50% das vendas mundiais de celulares em seu auge, a empresa finlandesa transformou como o mundo se comunicava, com modelos como o 3210 e o 3310 — conhecidos mundialmente por sua durabilidade.
Com toques personalizados e o famoso "jogo da cobrinha", seus aparelhos conquistaram gerações. Em 2007, mesmo com o lançamento do iPhone, a Nokia ainda parecia imbatível. Mas a insistência em tecnologias ultrapassadas e a lentidão para adotar novos sistemas operacionais selaram sua queda. Em menos de uma década, a gigante saiu do topo para ser vendida à Microsoft por US$ 7,2 bilhões.
Hoje, analistas começam a ver sinais semelhantes na trajetória da Apple. A estagnação em lançamentos inovadores, os atrasos em inteligência artificial e a crescente pressão regulatória compõem um cenário de alerta. Para especialistas, a combinação de sucesso passado com resistência a mudanças estruturais lembra os erros estratégicos que precipitaram a queda da Nokia.
A Apple, que por anos ditou o ritmo do setor com produtos disruptivos como o iPhone e o iPad, agora enfrenta questionamentos sobre sua capacidade de liderar a próxima grande transformação tecnológica: a era da inteligência artificial.
De Siri à estagnação: a IA que não veio
Em 2024, a Apple anunciou com pompa sua estratégia de inteligência artificial, o Apple Intelligence, prometendo transformar a experiência dos usuários e reposicionar a empresa na corrida pela IA generativa. A principal expectativa girava em torno da assistente virtual Siri, que seria finalmente atualizada para competir com os grandes modelos de linguagem e oferecer interações mais naturais, contextuais e proativas. A promessa era fazer da Siri uma verdadeira assistente inteligente, capaz de compreender comandos complexos, antecipar necessidades e executar tarefas com autonomia.
Mas, um ano depois, quase nada se concretizou. A reformulação da Siri foi adiada por tempo indeterminado, e os poucos recursos introduzidos — como sugestões automáticas, resumos de mensagens e ajustes contextuais — não diferem significativamente de funcionalidades já disponíveis em sistemas como o Gemini, do Google, ou no ChatGPT da OpenAI.
Enquanto isso, empresas como OpenAI, Meta, Xiaomi e Baidu vêm liderando uma nova onda de dispositivos nativos de IA, como smart glasses, wearables e terminais dedicados, projetados especificamente para interações por voz e processamento em nuvem. Esses equipamentos, por serem construídos do zero com IA no centro da experiência, deixam a Apple em uma posição de retaguarda tecnológica.
Mercado pune lentidão: ações caem 20%
A Apple acumula uma queda de quase 20% em suas ações no ano até o momento, tornando-se a mais afetada entre as chamadas “Magníficas Sete” da tecnologia — grupo que inclui Alphabet, Amazon, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla. O desempenho abaixo da média reflete o crescente ceticismo do mercado em relação à capacidade da empresa de manter sua liderança inovadora em meio a mudanças estruturais no setor.
Entre os principais fatores de pressão está a dependência da Apple da China para a produção de iPhones e componentes-chave. Com a escalada tarifária promovida pelo presidente Donald Trump, a empresa enfrenta incertezas sobre os custos de importação e a viabilidade da cadeia de suprimentos. Mesmo com tentativas de diversificação industrial para a Índia e Vietnã, analistas consideram que o ecossistema chinês ainda é insubstituível no curto prazo.
Além disso, a Apple está sob intensa vigilância regulatória em suas duas maiores frentes de receita fora do iPhone: a App Store e o acordo com o Google. O contrato com a gigante das buscas, que garante a definição do Google como buscador padrão nos iPhones, gera cerca de US$ 20 bilhões por ano para a Apple. No entanto, uma decisão judicial nos Estados Unidos pode proibir cláusulas de exclusividade nesse tipo de contrato, comprometendo parte significativa desse fluxo.
O UBS estima que um eventual bloqueio dessa exclusividade poderia reduzir em até US$ 10 bilhões a receita da Google e impactar diretamente a Apple, ainda que de forma indireta. O analista David Vogt, do UBS, destaca que o mercado já reage com inquietação: “Recebo ligações diárias perguntando o que acontecerá com as ações da Apple se essa decisão for confirmada.”
Outro risco crescente é a pressão da Digital Markets Act, na União Europeia, e o processo antitruste movido pela Epic Games nos EUA. Ambos os casos podem obrigar a Apple a permitir métodos alternativos de pagamento e distribuição de apps, o que pode reduzir as taxas cobradas e afetar os mais de US$ 30 bilhões em receita anual de comissões da App Store, segundo o Bank of America.
Apesar do cenário desafiador, os bancos mantêm diferentes visões sobre o futuro da empresa. O Goldman Sachs mantém a recomendação de “compra” e um preço-alvo de US$ 253, apostando na força do ecossistema da Apple e na fidelidade dos usuários. Já o Bank of America também recomenda compra, mas reduziu o preço-alvo de US$ 250 para US$ 240, citando o ambiente econômico volátil e os riscos tarifários como fatores limitantes.
O UBS, por sua vez, adota posição “neutra”, com preço-alvo de US$ 210, avaliando que o impacto das tarifas seria limitado — afetando apenas cerca de 2% do lucro anual por ação. Enquanto isso, a Morningstar classifica a ação como “justamente valorizada” e projeta crescimento anual de receita de 7% até 2029, sustentado principalmente pelo iPhone.
Mesmo com perspectivas divididas, o consenso entre analistas é de que a Apple enfrenta um ponto de inflexão crítico. A capacidade de responder rapidamente aos desafios regulatórios, geopolíticos e tecnológicos determinará se a empresa conseguirá manter sua posição dominante — ou se poderá entrar para o grupo das gigantes que perderam o protagonismo por não se reinventar a tempo.
Processo sobre produto: o legado de Tim Cook
Segundo a The Economist, o CEO Tim Cook é comparado a Jack Welch, ex-líder da General Electric: ambos entregaram lucros robustos e consistentes a investidores ao longo de seus mandatos, mas deixaram como legado estruturas corporativas fragilizadas diante de transformações externas rápidas. No caso da GE, essa vulnerabilidade culminou na derrocada da companhia nos anos seguintes à saída de Welch. No caso da Apple, o alerta ainda é preventivo.
Desde que assumiu em 2011, Cook consolidou a Apple como a empresa mais valiosa do mundo, elevando seu valor de mercado para mais de US$ 3 trilhões em 2022. No entanto, sua estratégia se baseou em incrementalismo confiável, com foco em aperfeiçoamentos constantes e rigor operacional, priorizando estabilidade financeira e expansão do ecossistema de serviços em detrimento de inovações radicais.
A abordagem, embora bem-sucedida no curto prazo, é questionada por analistas diante da atual transição tecnológica liderada pela inteligência artificial. Para especialistas ouvidos pela The Economisti, como Craig Moffett, da MoffettNathanson, a força histórica da Apple sempre esteve na reinvenção de “form factors”. “Os maiores momentos da empresa vieram da transformação de formatos — do Mac, que redefiniu a computação pessoal; do iPod, que revolucionou o consumo de música; e do iPhone, que popularizou os smartphones com tela sensível ao toque", disse.
Tim Cook (Leandro Fonseca/Exame)
Agora, a próxima revolução tecnológica está em curso, e tudo indica que será comandada por IA embarcada em novos dispositivos. Moffett observa que, até aqui, a Apple não lidera esse movimento, enquanto rivais como Meta, Google e startups como a Humane apostam em interfaces de voz, realidade aumentada e smart glasses.
A preocupação cresce porque, ao manter sua estratégia cautelosa e pouco disposta a correr riscos, Tim Cook pode repetir o erro de líderes que apostaram no legado para manter a relevância. Como alertam analistas do setor, em tecnologia, o passado raramente garante o futuro — e a história da Nokia serve como lembrete do custo de ignorar esse princípio.
Privacidade como freio à IA
O compromisso da Apple com a privacidade, visto por anos como diferencial competitivo, agora impõe limites. Ao evitar coletar dados individualizados, a empresa não consegue treinar modelos personalizados de IA com a mesma eficácia que rivais como Google e Meta.
Além disso, a insistência em executar IA localmente, nos próprios dispositivos, desacelera o avanço frente aos modelos mais poderosos em nuvem. Como resultado, a Apple já considera parcerias com terceiros, como a integração do ChatGPT ao iOS, rompendo com o histórico “jardim murado”.
O risco real de “ir de Nokia”
A história da tecnologia está repleta de gigantes que dominaram uma era — e que, em pouco tempo, perderam espaço por não se adaptarem às transformações do mercado. A Nokia, líder absoluta de celulares no início dos anos 2000, resistiu a mudanças estratégicas cruciais e apostou em tecnologias ultrapassadas, como o sistema Symbian. Já a BlackBerry, famosa por seus teclados físicos e segurança corporativa, demorou a aceitar a nova era dos smartphones com telas sensíveis ao toque.
Ambas ignoraram sinais claros de transição no comportamento dos consumidores e na evolução do ecossistema digital. O resultado foi a perda acelerada de participação de mercado e, posteriormente, a saída do jogo.
Hoje, analistas observam com atenção se a Apple, mesmo com todo seu histórico de sucesso, poderá repetir os mesmos erros. A revolução tecnológica da vez é impulsionada por inteligência artificial embarcada, dispositivos vestíveis com assistentes inteligentes, realidade aumentada e computação em nuvem — e as empresas que liderarem essa transição estarão na vanguarda do próximo ciclo de inovação.
Enquanto Google, Meta e startups investem em smart glasses e IA nativa, a Apple ainda não apresentou um produto transformador nesse campo. O anúncio do Apple Intelligence decepcionou. A Siri continua sem grandes avanços, e a empresa tem apostado em incrementos tímidos.
Para analistas como Richard Windsor, da Radio Free Mobile, a Apple pode ter uma carta na manga: o investimento no Vision Pro. Embora inicialmente recebido com ceticismo e considerado um produto de nicho devido ao alto preço e aplicações limitadas, o headset pode representar mais do que uma tentativa de entrar no mercado de realidade virtual. Segundo Windsor, o Vision Pro pode ser o embrião de uma nova plataforma de hardware que prepare a Apple para o próximo grande ciclo tecnológico: os óculos inteligentes integrados à IA.
Enquanto concorrentes como Meta, Google e Xiaomi já testam modelos de smart glasses com assistentes ativados por voz e funções de realidade aumentada, a Apple possui diferenciais estratégicos: domínio em design de hardware, expertise em integração entre dispositivos e uma base instalada de usuários fiéis. Se conseguir aproveitar o aprendizado do Vision Pro para lançar óculos mais leves, acessíveis e úteis no cotidiano, a empresa pode voltar a liderar a inovação em dispositivos pessoais.
Caso a Apple não se reposicione rapidamente com uma proposta sólida e inovadora para a era da IA ubíqua, corre o risco de entrar para a mesma lista de gigantes que, apesar do passado glorioso, falharam em antecipar o futuro — e pagaram caro por isso.
Wall Street ainda acredita — com ressalvas
Mesmo com as turbulências, os principais bancos continuam apostando na Apple. Goldman Sachs mantém recomendação de compra, com preço-alvo de US$ 253. Bank of America, Morgan Stanley e CFRA Research compartilham a visão positiva, enquanto UBS adota postura neutra.
A maioria vê oportunidades no crescimento dos serviços, na possível adoção de IA e na diversificação da produção para fora da China. Mas reconhece: se a Apple não reagir com velocidade e audácia, poderá repetir erros que custaram a hegemonia de outras gigantes.