Repórter
Publicado em 14 de agosto de 2025 às 11h37.
No fim dos anos 1990, o governo dos Estados Unidos decidiu que a Microsoft era poderosa demais para definir, sozinha, o rumo da computação pessoal. A empresa havia se aproveitado do domínio do Windows, seu sistema operacional, para forçar a adoção do Internet Explorer, eliminando a concorrência representada pela Netscape.
Quase 25 anos depois, o mesmo Departamento de Justiça tenta provar que o Google está repetindo o padrão, usando o navegador Chrome e seu motor de busca como barreiras de entrada no mercado digital. O julgamento contra o Google, iniciado em 2023, é considerado o maior caso antitruste de tecnologia desde o processo contra a Microsoft em 1998.
Embora separados por décadas, os dois episódios compartilham mais do que o peso institucional: ambos lidam com como uma empresa dominante define a arquitetura da internet, e com isso, concentra poder econômico, influência sobre o comportamento dos usuários e vantagem competitiva. Mas há diferenças fundamentais de contexto.
O caso Microsoft ocorreu quando a internet ainda engatinhava e a questão da privacidade de dados era irrelevante; o do Google acontece em um ecossistema digital maduro, globalmente interconectado, onde a coleta de dados pessoais em escala industrial se tornou central ao modelo de negócios. O Google não apenas controla a busca — ele mapeia e monetiza o comportamento digital de bilhões de usuários.
Na época, a Microsoft reagiu com descrença e autoconfiança. Bill Gates chegou a afirmar que a empresa estava certa e o governo não tinha com o que se preocupar. Mas os emails internos revelados durante o julgamento contavam uma história diferente: Paul Maritz, então vice-presidente da Microsoft, declarou sobre a Netscape: "Vamos cortar o sustento deles. Tudo que eles estão vendendo, nós vamos oferecer de graça." A frase se tornou emblemática da agressividade da empresa contra seus concorrentes.
Paul Maritz e Bill Gates: lideres da Microsoft tomaram postura agressiva de concorrência que resultou em bloqueio antitruste. (Getty Images)
O juiz Thomas Penfield Jackson discordou da defesa da Microsoft e classificou a empresa como um monopólio. O veredicto não levou ao desmembramento da companhia, mas alterou profundamente sua postura: a Microsoft passou anos sob vigilância judicial e perdeu terreno na web. Mais crucialmente, a empresa acabou perdendo a corrida mobile, abrindo espaço para o iPhone e o Android, que ironicamente se tornaria propriedade do Google.
Quem ocupou esse vácuo foi exatamente o Google. O motor de busca da gigante de Mountain View virou a porta de entrada para a internet. Sua ascensão também dependeu de uma estratégia agressiva de distribuição: acordos com fabricantes como a Apple e com navegadores como o Firefox garantiram que o search engine da empresa fosse o padrão, repetindo, de certa forma, a lógica do Windows pré-internet.
A trajetória do Chrome remete diretamente ao dilema enfrentado por Gates nos anos 1990, quando viu a Netscape ser alçada a símbolo de uma nova era digital. Para conter o avanço do navegador rival, a Microsoft não hesitou em integrar o Explorer ao Windows, criando o precedente para a ação do governo. O Chrome, por sua vez, não apenas venceu o Internet Explorer: ele se tornou a principal plataforma de coleta de dados, veiculação de publicidade e direcionamento de serviços da Alphabet.
Segundo os autos do atual julgamento, o Google pagou mais de US$ 10 bilhões por ano para manter sua busca como padrão em navegadores, celulares e assistentes de voz. A parceria bilionária com a Apple — que mantém o Google como busca padrão no Safari — exemplifica como as alianças mudaram: a empresa de Cupertino, que antes era rival histórica da Microsoft, agora é simultaneamente parceira e concorrente do Google. A prática teria sufocado alternativas e ampliado o monopólio, especialmente em dispositivos móveis com Android, sistema também controlado pela empresa.
Ao contrário da Microsoft, que enfrentava críticas por travar a inovação, o Google agora se defende alegando que sua supremacia é reflexo de preferência do consumidor. Mas os procuradores federais sustentam que essa escolha é induzida, e não livre.
O que transforma o julgamento atual em um divisor de águas é o momento em que ele ocorre: pela primeira vez em décadas, a busca tradicional do Google está sob ameaça real. A emergência da IA generativa e a popularização de modelos como o ChatGPT e o Copilot da Microsoft vêm deslocando a forma como os usuários interagem com informação.
O default da internet está mudando e se antes ele era o navegador, agora pode ser um assistente de IA. A ironia histórica é clara: a Microsoft, acusada de monopólio em 2000, surge em 2024 como a empresa que ameaça desestabilizar o novo monopólio, ao integrar IA diretamente em seus produtos e disputar a atenção do usuário.
O timing é crucial. Diferentemente de 1998, quando a Microsoft ainda crescia e pôde ser contida antes de consolidar completamente seu domínio web, o Google já enfrenta pressão competitiva real da IA, uma tecnologia que pode tornar qualquer decisão judicial menos definitiva.
Além disso, o cenário regulatório atual é mais fragmentado. Enquanto nos anos 1990 uma decisão americana poderia definir padrões globais, hoje a União Europeia, a China e os Estados Unidos têm abordagens diferentes, limitando o alcance de qualquer veredicto individual.
Ao final, o processo atual contra o Google pode se revelar menos sobre punição, e mais sobre contenção de danos. A lógica de distribuição dominante e acordos bilionários com fabricantes está sob ataque — ao mesmo tempo em que o comportamento dos usuários muda rápido demais para que uma só empresa continue ditando as regras.