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Ambiente virtual virou 'Eldorado' do crime organizado, diz especialista em segurança pública

Dados do Anuário de Segurança Pública 2025 revelam uma queda de 5,4% nas mortes violentas, com o menor índice em 13 anos, mas alta de estelionatos, com mais de 2 milhões de caso em 2024

André Martins
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 26 de julho de 2025 às 09h00.

A violência de rua caiu, mas a sensação de insegurança só aumenta no Brasil, como mostram as últimas pesquisas de opinião.

A explicação para essa dissociação é uma nova dinâmica do crime no País, com aumento da atuação das organizações criminosas no ambiente virtual.

“O ambiente virtual passou a ser o ‘Eldorado’ do crime organizado, e isso porque é um espaço pouco regulado, sem fiscalização adequada. Esse cenário facilitou a atuação das facções criminosas”, diz Renato Sérgio de Lima, Diretor Presidente do Fórum de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP, em entrevista à EXAME.

Dados do Anuário de Segurança Pública 2025 revelam uma queda de 5,4% nas mortes violentas, com o menor índice em 13 anos, mas alta de estelionatos, com mais de 2 milhões de caso em 2024.

Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (YouTube/Divulgação)

Lima argumenta que o problema no enfrentamento dessa nova realidade do crime está na dificuldade do poder público em utilizar as polícias de forma eficiente para coibir essas práticas, com mais inteligência e integração.

“As polícias não conseguem se organizar de forma eficiente para investigar esses crimes. A questão dos estelionatos, por exemplo, é um reflexo da falta de integração e da inadequação das investigações no mundo digital”, diz o professor.

O relatório ainda destaca o aumento de crimes que ocorrem em casa, como a violência contra mulher, crianças e adolescentes.

O professor da FGV diz que a característica do agressor, normalmente uma pessoa da família, dificulta o registro desses delitos e a discussão de políticas públicas para lidar com a questão.

“Muitas vezes, esses crimes ocorrem no ambiente doméstico, e isso não aparece nas estatísticas oficiais. As vítimas são, em sua maioria, agredidas por pessoas do seu círculo familiar. Essas estatísticas de violência continuam aumentando, mas de uma forma invisível”, afirma.

Confira a entrevista completa com Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Queria discutir muito sobre a diferença entre os números reais e a percepção da população. A impressão da sociedade é de que a violência aumentou, quando, na verdade, os dados indicam que ela diminuiu. Qual é a análise que pode ser feita? 

A edição do anuário deste ano reflete um novo padrão, uma nova dinâmica na criminalidade e na segurança pública no Brasil. A população que coloca a segurança como uma das principais preocupações tem razão. De fato, estamos passando por um processo complexo, com novas dinâmicas da criminalidade no Brasil. Quando falamos dos chamados "crimes de rua", como homicídios dolosos, latrocínios e outros crimes violentos, vemos uma queda geral. Acontece que, embora os números estejam caindo, a sensação de insegurança persiste. A população não percebe essa queda, e isso é compreensível.

Então, a percepção da população é que ela está mais insegura, mas os dados não refletem isso diretamente.

Exatamente. Os crimes de rua estão diminuindo, mas outras formas de violência, como a doméstica e a escolar, estão em ascensão. A violência contra a mulher, a violência sexual e a violência contra crianças e adolescentes estão crescendo muito. Muitas vezes, esses crimes ocorrem no ambiente doméstico, e isso não aparece nas estatísticas oficiais. As vítimas são, em sua maioria, agredidas por pessoas do seu círculo familiar. Essas estatísticas de violência continuam aumentando, mas de uma forma invisível.

Você mencionou também a violência nas escolas, que tem aumentado. Como isso impacta a educação? 

Temos um dado alarmante: entre as escolas pesquisadas no último levantamento do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), o número de dias de aula interrompidos por violência cresceu quase 250%. Isso significa que, além de perdermos a segurança na rua, a escola também deixou de ser um ambiente seguro. Os estudantes estão vivendo essa violência em um espaço onde deveriam se sentir protegidos e focados no aprendizado.

Em relação a criminalidade digital, como o senhor analisa da migração do crime de rua para o digital? 

A pandemia acelerou uma migração para o mundo virtual, o que acabou favorecendo o crime cibernético. A digitalização da vida aumentou a vulnerabilidade, com um grande crescimento de crimes como os estelionatos. O ambiente virtual se tornou um espaço muito fértil para quadrilhas de crimes organizados. O ambiente virtual passou a ser o Eldorado do crime organizado, e isso porque é um espaço pouco regulado, sem fiscalização adequada. Esse cenário facilitou a atuação das facções criminosas. O crime no ambiente virtual é sem enfrentamento e altamente lucrativo, pois não exige o risco físico e oferece grandes retornos financeiros.

Esse aumento nas ocorrências de estelionato virtual é significativo?

Exatamente. Os estelionatos aumentaram de forma alarmante no Brasil. De 2018, foi uma alta de 400%. De 2023 para 2024, houve um crescimento considerável desses crimes, e a polícia ainda tem dificuldades para distinguir entre estelionatos físicos e virtuais. Isso acontece porque o tipo penal ainda não está completamente adaptado ao novo cenário digital. E, muitas vezes, as vítimas estão em estados diferentes dos criminosos, o que torna a investigação ainda mais difícil.

Como as polícias estão lidando com esse tipo de crime?

As polícias não conseguem se organizar de forma eficiente para investigar esses crimes. A questão dos estelionatos, por exemplo, é um reflexo da falta de integração e da inadequação das investigações no mundo digital. Quando se lida com crimes no ambiente virtual, a polícia ainda precisa se adaptar para conseguir distinguir entre um crime físico e um crime cibernético. O número de ocorrências é alto, mas a resolução desses casos é muito baixa.

E com relação ao aumento dos roubos e furtos de celular, como está a situação no Brasil?

Houve uma redução nos roubos de celular, mas essa queda pode ser vista de uma forma superficial. Se olharmos com mais atenção, o celular tem sido um grande alvo devido a seu valor econômico, especialmente em termos de acesso a contas bancárias e outras informações. Algumas ações, como o programa do celular seguro, têm mostrado resultados positivos. Porém, precisamos de mais programas consistentes, como o que vimos no Piauí, para aumentar a eficácia na recuperação e devolução desses aparelhos.

Você acredita que esses programas estão ajudando a combater o problema?

Sim, os programas têm sido eficazes. Em estados com programas estruturados, a recuperação de celulares e a redução de furtos e roubos têm apresentado bons resultados. O importante é que, além da recuperação, esses programas ajudam a devolver os aparelhos às vítimas, algo que nem sempre acontece sem esses programas. Quando as polícias não têm esse controle, os aparelhos ficam armazenados sem possibilidade de devolução.

Como a PEC da Segurança Pública, em discussão no Congresso, pode ajudar a combater a nova dinâmica do crime no Brasil?

A PEC tem aspectos positivos, especialmente no que diz respeito ao rearranjo federativo. Ela reabre o debate sobre a organização das polícias e a integração dos dados. No entanto, ela não resolve todos os problemas, como a modernização da segurança pública e a atuação em questões de crimes cibernéticos. A falta de avaliação de programas anteriores também é uma falha grave. Mas o fato de abrir o debate sobre como os diferentes níveis de governo podem colaborar é um passo importante.

Há um progresso, mas ainda há desafios a serem superados.

Exatamente. A PEC pode trazer uma evolução, mas sozinha não resolverá todos os problemas. É preciso um trabalho conjunto entre a União, os estados e os municípios, com foco na adaptação das polícias às novas realidades, como a cibernética e a digitalização dos crimes.

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