Investimento em creches exige financiamento adequado, equidade e valorização docente (Alexandre Severo/EXAME.com)
Publicado em 20 de agosto de 2025 às 05h17.
Professora Luciene Cavalcante*
A Educação Infantil no Brasil tem uma trajetória que evoluiu de um caráter puramente assistencialista para se tornar a primeira etapa da educação básica, reconhecida como fundamental para o desenvolvimento integral da criança. Historicamente, as creches surgiram no século XVIII como "asilos infantis", destinadas principalmente a cuidar de crianças enquanto suas famílias trabalhavam, sem foco pedagógico. Essa visão dualista resultou em instituições precarizadas para os filhos da classe trabalhadora e jardins de infância com propostas pedagógicas para as elites.
A Constituição Federal de 1988 marcou um divisor de águas, estabelecendo o atendimento em creche e pré-escola como dever do Estado e direito da criança. Posteriormente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 consolidou a Educação Infantil como parte integrante da Educação Básica, unificando creches e pré-escolas e atribuindo aos municípios a responsabilidade pela sua oferta.
Estudos do Professor James Heckman, Nobel de Economia, demonstram que o investimento na primeira infância (0 a 5 anos) é a forma mais eficiente e de maior retorno para o desenvolvimento econômico e social - cada real aplicado nessa fase gera benefícios que se multiplicam ao longo da vida adulta, por meio de aumento da escolaridade, melhor desempenho profissional, e redução de custos com reforço escolar, saúde e sistema de justiça criminal. Essa fase é crucial porque o cérebro se desenvolve rapidamente, sendo mais maleável para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e de caráter como atenção, motivação, autocontrole e sociabilidade, essenciais para o sucesso na vida.
No entanto, o Brasil continua negando o direito básico de acesso a creches a mais de 60% das crianças de 0 a 3 anos. Enquanto a legislação avança, a realidade das creches e das profissionais que nelas atuam revela uma contradição dolorosa. As educadoras infantis, que são em sua esmagadora maioria mulheres (97% segundo o Censo Escolar 2022), com formação superior e aprovadas em concursos públicos, enfrentam condições de trabalho que não condizem com a importância estratégica de sua função. A maioria não é enquadrada na carreira do magistério, recebendo baixos salários e sem plano de carreira, apesar da LDB estabelecer que as professoras da educação infantil são integrantes da carreira docente.
Essa dissonância entre o reconhecimento legal e a realidade concreta se reflete também nos desafios de financiamento. Embora mecanismos como o Fundeb representem avanços importantes, os recursos destinados à educação infantil permanecem insuficientes para garantir a expansão com a qualidade necessária. A precariedade do financiamento se traduz em déficit de vagas, infraestrutura inadequada e dificuldades para atrair e reter profissionais - um ciclo vicioso que compromete nosso futuro coletivo. O próximo Plano Nacional de Educação terá a responsabilidade histórica de traduzir esses princípios em metas concretas e mecanismos efetivos de implementação.
É urgente que o próximo Plano Nacional de Educação defina metas mais específicas e estratégias claras para combater as desigualdades de acesso e promover a igualdade de oportunidades de aprendizagem, especialmente para crianças em situação de maior vulnerabilidade social. A recém-instituída Resolução CNE/CEB nº 1, de 17 de outubro de 2024, que estabelece as Diretrizes Operacionais Nacionais de Qualidade e Equidade para a Educação Infantil, é um marco mandatório. Ela organiza a qualidade em cinco dimensões: gestão democrática, identidade e formação profissional, proposta pedagógica, avaliação da educação infantil e infraestrutura, edificações e materiais. Essas diretrizes exigem a qualificação das equipes escolares, com profissionais habilitados e em formação continuada, e a valorização de suas carreiras.
Para que a Educação Infantil cumpra seu papel transformador, é imperativo que a sociedade, o Estado e as famílias construam um pacto federativo sólido, garantindo não apenas o acesso universal, mas também a qualidade e a equidade em todas as instituições. Como primeiro passo, torna-se urgente a realização de um amplo diagnóstico nacional sobre as condições estruturais, pedagógicas e de trabalho nas creches, que identifique os principais desafios e oriente políticas públicas baseadas em evidências. Esse estudo deve avaliar desde a infraestrutura física até a formação e condições de trabalho das profissionais, cujo reconhecimento e valorização são pilares incontornáveis para a qualidade do atendimento. Pesquisas já comprovam que a excelência nessa fase é determinante para trajetórias escolares e de vida bem-sucedidas, reforçando a necessidade de ações imediatas e embasadas em dados concretos.
A jornada da educação infantil no Brasil é de contínuo aprimoramento, mas, apesar dos significativos avanços legais, persiste uma lacuna entre o estabelecido na legislação e a realidade concreta. A compreensão histórica, a aceitação plena da indissociabilidade entre cuidar e educar, e o reconhecimento e a valorização de seus profissionais são passos inadiáveis para que o país cumpra seu compromisso com a primeira infância. Valorizar quem cuida e educa nossos bebês não é só justiça trabalhista, é investimento no futuro do país através do desenvolvimento pleno das crianças brasileiras
A plena efetivação do direito à educação infantil de qualidade passa necessariamente pela valorização das profissionais que atuam nessa etapa, com melhores condições de trabalho, respeito ao piso salarial, formação continuada e reconhecimento social. A educação infantil deixou de ser assistência para se tornar direito - agora é preciso transformar esse direito em realidade no chão da creche.
*Professora Luciene Cavalcanti é deputada federal (PSOL/SP) e membro da Frente Parlamentar Mista da Educação