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Opinião: é urgente a atualização de normas para bens recondicionados

Brasil precisa superar desafios regulatórios para incentivar o uso de bens recondicionados e promover a sustentabilidade digital

Estamos em um momento de transição, no qual as transformações digitais exigem infraestrutura mais robusta e acessível (gorodenkoff/Getty Images)

Estamos em um momento de transição, no qual as transformações digitais exigem infraestrutura mais robusta e acessível (gorodenkoff/Getty Images)

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Publicado em 25 de junho de 2025 às 10h00.

Por Andrea Weiss Balassiano*

A crescente digitalização da economia e da vida social impõe ao Brasil o desafio de promover inclusão digital e inovação tecnológica de maneira ambientalmente sustentável. Nesse contexto, o uso de bens recondicionados no setor de informática e telecomunicações representa uma oportunidade estratégica para ampliar o acesso à tecnologia, reduzir impactos ambientais e fomentar a economia circular. Apesar de seu potencial, esses produtos ainda enfrentam barreiras regulatórias significativas, especialmente no que se refere à política de comércio exterior.

Sensibilização ambiental e o programa Computadores para Inclusão

Em junho de 2025, o Ministério das Comunicações instalou na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, um painel de 500 metros quadrados confeccionado com sucata eletrônica, como forma de sensibilizar a sociedade sobre os riscos ambientais do descarte inadequado de equipamentos eletroeletrônicos. A ação, realizada no Dia Mundial do Meio Ambiente, teve como base o programa Computadores para Inclusão, que atua há mais de uma década na recuperação de equipamentos por meio dos Centros de Recondicionamento de Computadores (CRCs). Ao longo de sua trajetória, o programa já evitou o descarte de mais de nove mil toneladas de resíduos eletrônicos, promovendo a reinserção desses materiais em escolas públicas, bibliotecas, comunidades quilombolas, indígenas e outras instituições sociais.

Esses equipamentos passam por triagem técnica, testes de desempenho, substituição de componentes e reconfiguração, tornando-se aptos ao uso com segurança e funcionalidade. Mais do que um projeto de reaproveitamento, trata-se de uma política pública que une impacto social direto, sustentabilidade ambiental e eficiência no uso de recursos públicos. No entanto, seu potencial de expansão contrasta com a falta de clareza e incentivo no tratamento aduaneiro dos bens recondicionados no comércio exterior brasileiro — especialmente os destinados aos setores de informática e telecomunicações, cujos custos de aquisição são elevados.

Obstáculos regulatórios para os bens recondicionados

Um dos principais obstáculos reside na Resolução Gecex nº 512/2023, que veda a concessão do regime de Ex-tarifário para bens usados — sem qualquer menção ou exceção expressa para bens recondicionados. Essa política de comércio exterior permite a redução temporária da alíquota do imposto de importação até 0% para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT) quando não há produção nacional equivalente. Ele é fundamental para garantir o acesso a tecnologias inexistentes no mercado interno, aumentar a produtividade das empresas e estimular a inovação industrial.

No setor de telecomunicações, especificamente, o regime é considerado essencial para viabilizar a expansão da infraestrutura digital, reduzindo custos e tornando investimentos mais acessíveis. Ao excluir os bens recondicionados do Ex-tarifário, o Brasil não apenas desestimula práticas sustentáveis como também se distancia da lógica da economia circular — que propõe a extensão do ciclo de vida dos produtos, a redução da extração de recursos naturais e a mitigação da geração de resíduos.

Os benefícios ambientais e econômicos dos bens recondicionados

É importante frisar que bens recondicionados não são meramente produtos usados. Eles são restaurados por fabricantes ou técnicos especializados, passam por processos padronizados de verificação, manutenção e substituição de peças e, muitas vezes, são comercializados com certificado de garantia. Grandes empresas globais — como Apple, Dell e Cisco — têm linhas dedicadas de equipamentos recondicionados, oferecendo produtos de alto desempenho com preços reduzidos e menor pegada ambiental.

Estudos internacionais apontam que até 80% dos materiais contidos em equipamentos eletroeletrônicos descartados podem ser reaproveitados. Cada tonelada de equipamentos recondicionados pode evitar a emissão de até 1,5 tonelada de CO₂ equivalente, segundo estimativas de institutos especializados em gestão de resíduos. Considerando que o Brasil é hoje o quinto maior gerador de lixo eletrônico do mundo, adotar políticas que incentivem o recondicionamento de equipamentos poderia representar um avanço significativo na agenda ambiental e tecnológica do país.

Economia e acessibilidade com o recondicionamento de equipamentos

Além dos ganhos ambientais, a adoção de bens recondicionados pode representar economia substancial para governos e empresas privadas. Em áreas como educação, saúde e serviços públicos, a aquisição de equipamentos recondicionados com garantia funcional pode viabilizar a modernização da infraestrutura digital com menor custo. Da mesma forma, micro e pequenas empresas, que muitas vezes não têm recursos para adquirir tecnologia de ponta, poderiam se beneficiar da importação facilitada desses equipamentos.

Infelizmente, a ausência de clareza na legislação aduaneira brasileira impede que esse mercado se desenvolva plenamente. O fato de bens recondicionados serem automaticamente classificados como “usados” — mesmo quando restaurados segundo critérios técnicos e funcionais — gera insegurança jurídica e restringe seu acesso ao mercado nacional. A consequência é um paradoxo: enquanto políticas públicas como o Computadores para Inclusão demonstram os benefícios sociais e ambientais do recondicionamento, a legislação de comércio exterior os penaliza.

Mudança regulatória urgente para fomentar o recondicionamento

Corrigir essa distorção é uma medida urgente. Atualizar o marco regulatório de comércio exterior para diferenciar juridicamente bens recondicionados de bens usados é fundamental para assegurar sua elegibilidade ao Ex-tarifário. Isso permitiria a importação de equipamentos com redução ou isenção de imposto de importação, desde que não haja produção nacional equivalente — como já ocorre com produtos novos. Tal mudança também estimularia a criação de uma cadeia estruturada de recondicionamento e logística reversa no Brasil, fortalecendo o ecossistema de economia circular.

Adicionalmente, a atualização normativa estaria alinhada às metas de ESG (ambiental, social e governança) assumidas por empresas e governos. Ao permitir o recondicionamento e a importação de bens com critérios técnicos e ambientais claros, o Brasil poderia atrair investimentos, gerar empregos em centros de reciclagem e recondicionamento, reduzir emissões de gases de efeito estufa e ampliar o acesso à tecnologia.

Estamos em um momento de transição, no qual as transformações digitais exigem infraestrutura mais robusta e acessível. Essa infraestrutura, por sua vez, demanda equipamentos — que não precisam, necessariamente, ser novos. Podem ser recondicionados, funcionais, seguros e mais baratos. Mas para isso, é preciso visão estratégica e coragem política para mudar a legislação. Diferenciar o que é recondicionado do que é meramente usado, e tratá-los de forma adequada. Não é apenas uma questão técnica é uma escolha que definirá o futuro da inclusão digital, da inovação tecnológica e do compromisso ambiental do Brasil.

*Andrea Weiss Balassiano é advogada atuante na área de comércio internacional, com mais de 25 anos de experiência em investigações de defesa comercial no Brasil. É especialista em comércio internacional e sócia do escritório Monteiro & Weiss Trade.

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