A tecnologia, especialmente a IA, ainda depende de lideranças médicas capacitadas (gorodenkoff /Getty Images)
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Publicado em 17 de outubro de 2025 às 10h00.
Por Renato José Vieira*
O filósofo e matemático Alfred N. Whitehead escreveu certa vez que:
“A arte do progresso consiste em preservar a ordem em meio à mudança, e em preservar a mudança em meio à ordem”
A história da medicina é, em grande parte, a história dessa tensão.
Cada avanço técnico trouxe, junto com promessas de precisão e segurança, o risco de dissolver algo essencial do gesto de cuidar. Em cada época, o desafio dos médicos foi o mesmo: transformar sem desfigurar, incorporar o novo sem perder o vínculo que sustenta o sentido do encontro humano.
Nos últimos quinze anos, a sociedade tem assistido a uma transformação profunda em seus hospitais, muitos dos quais incorporaram tecnologias avançadas ao cuidado assistencial.
Essas inovações vão desde soluções aparentemente simples, como o prontuário eletrônico do paciente, ou telemedicina, até recursos de alta complexidade, como robôs cirúrgicos de precisão ou bioinformática para análise do genoma humano.
Mais recentemente, a inteligência artificial generativa surge como um possível divisor de águas, por sua capacidade de compreender contexto e lidar com as sutilezas das decisões médicas complexas.
Um dos maiores desafios neste campo é que diferente das diretrizes clínicas tradicionais, que possuem fluxograma claro de decisões, os algoritmos muitas vezes são herméticos em seu processamento: imensas matrizes algébricas intangíveis à compreensão humana.
Isso amplia a tensão entre inovação e segurança, e o líder clínico precisa entender as limitações, estar preparado para intervir e atuar como mediador entre o dado e o julgamento humano.
Não se trata de resistir à tecnologia, mas de reconhecer que ela já deixou de ser mera ferramenta. Ao infiltrar-se na tomada de decisão, protocolos e rotinas, ela passa a redesenhar a própria experiência de identidade do médico.
Criadores-Criaturas, reformatados por um novo modo de pensar e de agir, não podemos mais pensar nossa prática sem adaptá-la às mudanças de nosso próprio ser.
Podemos imaginar que um médico generalista, distante dos grandes centros, apoiado por sistemas inteligentes que ampliam o alcance e a qualidade do cuidado, consiga mesmo sem vasta experiência em casos complexos alcançar resultados relativamente semelhantes aos de equipes de referência. É um modelo que redistribui poder e responsabilidades.
Em grande medida, o desempenho cirúrgico ainda depende da habilidade manual do cirurgião e do caráter quase artesanal do procedimento. No entanto, a evolução da cirurgia robótica vem modificando esse paradigma.
Hoje, é possível que cirurgiões bem formados, após uma curva de aprendizado significativamente menor do que a exigida em técnicas manuais, alcancem resultados comparáveis, ou até mesmo superiores, aos de profissionais de virtuosidade excepcional.
Quanto mais os saberes se tornam acessíveis, mais se concentram nas mãos de quem controla os algoritmos, os bancos de dados e as plataformas.
A autonomia médica, que outrora dependia da formação e da experiência, hoje passa também pela soberania digital: pela capacidade de entender e questionar as ferramentas que utilizamos. A mesma tecnologia que promete emancipar pode, silenciosamente, tutelar.
Nosso papel é entender como essas novidades podem produzir efeito real e positivo para o paciente.
Responder a essa pergunta pode ser, quem sabe, o exercício mais sofisticado de liderança que a medicina contemporânea já enfrentou. Porque no fim das contas, o recurso tecnológico pode e deve estar a serviço da inteligência humana. E não o contrário.
Ao democratizar o conhecimento, a tecnologia exige uma liderança médica menos hierárquica, mais colaborativa e com múltiplos saberes; menos centrada em títulos, mais guiada por propósito e com habilidades expandidas.
O líder médico da era digital não será avaliado pela capacidade de implantar novos sistemas, mas pela habilidade de lidar com um cenário em plena evolução e inspirar confiança. Isso exige humildade e coragem.
Munido de sólida formação e apoiado pela tecnologia, o médico do futuro será reconhecido não pela habilidade de apertar botões, mas pela capacidade de apertar mãos; não por observar telas, mas por acolher o olhar do paciente.
Será julgado pela sensibilidade de incentivar a luta ou compreender o momento de cessá-la, por ser amigo e parceiro em vez de mera conexão, e por criar vínculos profundos no lugar de buscar simples likes.
*Dr. Renato José Vieira é Diretor Médico do Hospital Santa Catarina - Paulista.