Quem vai cuidar das mulheres que cuidam? (Maca and Naca/Getty Images)
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Publicado em 24 de junho de 2025 às 15h00.
Por Rachel de Andrade Silva*
Em função da articulação pela ampliação da licença paternidade, há uma mobilização da Elas no Poder em falar sobre saúde mental e cuidado, como já trouxemos por aqui em artigos que tratam como conciliar a carreira política e a maternidade e como o trabalho do cuidado está diretamente ligado à baixa representatividade das mulheres na política.
Mas hoje foquemos, então, naquelas que fazem o último de maneira desproporcional e sem remuneração. Afinal, o trabalho de cuidado é ao mesmo tempo fundamental para a criação e manutenção da vida e desprezado em função daquelas que o realizam.
O capitalismo vai se apropriar da categoria gênero e raça não só para determinar quem realiza o quê, mas também impõe ao qual trabalho se atribui valor, implicando na divisão do trabalho produtivo e reprodutivo.
O foco aqui é o trabalho reprodutivo, essencial ao sistema econômico, social e político, isto é, componente fundamental ao funcionamento do capitalismo, conforme nos ensina Federici (2019). A autora também defende que a força de trabalho reprodutiva não é independente do sistema, sendo subjugada às imposições da organização e relações de produção, com o trabalho doméstico imposto como algo natural, em vez de ser considerado como trabalho, até mesmo porque é articulado para não ser remunerado. O trabalho não remunerado imposto às mulheres influencia sobremaneira a redução do custo de mão de obra, viabilizando a própria sobrevivência do capital.
Nesse processo, às mulheres cabe realizar uma série de atividades para suprir as necessidades básicas e essenciais à existência de filhos, companheiros, demais parentes, etc, provendo-lhes cuidados físicos e emocionais, viabilizando que exerçam seu papel de, ou venham a se tornar, trabalhadores, fundamentais ao próprio capital.
De maneira que, o sistema se perfaz da exploração de uma força motriz não remunerada, invisibilizada e desvalorizada, que é responsável diretamente no cuidado e manutenção da vida, exercida primariamente por mulheres, onde a socialização gendrada determina que a responsabilidade pelo doméstico é uma inclinação supostamente natural do feminino, que vem no lastro da dicotomia masculino e feminino, que, por sua vez, é socialmente elaborada a partir de características biológicas.
Dados demonstram a organização da vida com base em papéis articulados pela construção de gênero e raça.
Segundo o IBGE, em 2022, mulheres dedicaram, aproximadamente, dez horas a mais que homens aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas. Com 92,1% das mulheres com 14 anos ou mais realizando trabalho reprodutivo, mulheres pretas apresentam maior taxa desse trabalho, aproximadamente 93%. Em média, as mulheres apresentam quase o dobro das horas semanais que homens dedicam a afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas.
Essa dinâmica gera consequências que atravessam inclusive a possibilidade de aposentar das mulheres, pois mais mulheres interrompem seus trabalhos em função de cuidar de alguém do que homens, sendo que mulheres negras são 2 em cada 3 pessoas que não trabalham porque precisam cuidar de pessoas ou da casa, o que obviamente impacta a capacidade de contribuição mínima para a previdência, o que, por sua vez, impacta no direito a se aposentar.
Um dos grandes pontos para equidade é superar a socialização da biologia, central para a construção da categoria gênero, que naturaliza a atuação em papéis diferentes na sociedade, conforme o gênero que a pessoa é considerada, hierarquizando relações e destituindo pessoas de condições mínimas para uma vida justa e pautada pelo bem-estar.
Nesse contexto, o Projeto de Lei 2691/2021 representa um ponto importante no avanço e fortalecimento dos direitos das mulheres. O PL propõe mudanças na legislação sobre Planos de Benefícios da Previdência Social, assegurando às mulheres que comprovem ter filho, ou equiparado, aposentadoria por idade no valor de um salário mínimo. Contudo, o Projeto está parado há mais de um ano na Comissão de Finanças e Tributação.
É preciso considerar que a formação das nossas instituições foi fundamentada em escravidão, etnocídio e misoginia. Estamos lidando com um Congresso conservador, formado por maioria de homens brancos, que tem mais compromisso em aumentar a conta de energia do trabalhador e propor PLs que promovam o retrocesso dos direitos das mulheres.
Daí se pergunta, essas mulheres que cuidam são cuidadas? Quem vai cuidar de quem cuida? Provavelmente outra mulher que não vai ser remunerada, agindo em função de um sistema que nos despreza.
*Rachel de Andrade Silva é pesquisadora e Diretora de Projetos da ONG Elas no Poder.
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