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Como a tecnologia molda as relações: insights da terapeuta Esther Perel

Com vídeos que somam mais de 40 milhões de visualizações, a terapeuta belga esteve em São Paulo na última quinta-feira no evento Flash Humanidades

Esther Perel: “Estamos mais sozinhos, mesmo cercados de pessoas. A perda ambígua é estar presente fisicamente, mas emocionalmente ausente — você vê alguém, mas não está realmente com essa pessoa" (Leo Branco/Exame)

Esther Perel: “Estamos mais sozinhos, mesmo cercados de pessoas. A perda ambígua é estar presente fisicamente, mas emocionalmente ausente — você vê alguém, mas não está realmente com essa pessoa" (Leo Branco/Exame)

Leo Branco
Leo Branco

Editor de Negócios e Carreira

Publicado em 24 de maio de 2025 às 13h14.

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A relação entre trabalho, tecnologia e as transformações sociais foi o eixo da palestra da terapeuta Esther Perel, realizada nesta quinta-feira (22) em São Paulo, durante o evento Flash Humanidades, organizado pela empresa de tecnologia Flash, especializada em benefícios corporativos.

Com mediação da jornalista Renata Ceribelli, a psicóloga abordou as mudanças profundas que redesenham o significado das relações humanas no ambiente profissional e na sociedade, com foco em desafios como isolamento, saúde mental e polarização.

Esther Perel é psicoterapeuta belga, filha de sobreviventes do Holocausto, e referência mundial em relacionamentos modernos, sexualidade e dinâmicas interpessoais. Formada em psicologia educacional e literatura francesa na Universidade de Jerusalém e com MBA em arteterapia expressiva nos Estados Unidos, vive em Nova York, onde dirige uma clínica e atua como consultora para empresas da Fortune 500.

Iniciou na terapia familiar, focando em trauma e conflitos culturais, e se tornou destaque na terapia de casais, questionando paradigmas tradicionais sobre amor e infidelidade. Autora best-seller, seus livros são traduzidos para mais de 30 idiomas. Seu podcast “Where Should We Begin?” traz sessões reais de terapia e suas palestras no TED têm mais de 40 milhões de visualizações.

Perel é uma das vozes mais influentes no campo dos relacionamentos modernos. Com formação transcultural e atuação global, ela se apresenta como uma "estudante de relacionamentos", que busca entender como as conexões humanas mudam diante das revoluções tecnológicas e dos deslocamentos culturais.

Segundo ela, a transformação mais relevante nas últimas décadas é que o trabalho se tornou um centro onde as pessoas buscam satisfazer necessidades existenciais antes supridas por estruturas como religião e comunidade.

“Hoje, o trabalho virou o lugar onde buscamos tudo aquilo que antes encontrávamos na igreja, na comunidade, na família”, afirmou. Essa mudança é resultado do enfraquecimento das redes comunitárias nas sociedades ocidentais, combinada com um período entre o fim da escola e o início da família onde o trabalho se torna o principal palco para realização financeira, social e emocional.

A economia da identidade e o novo papel do trabalho

Perel detalhou a evolução das economias que moldam a vida social. Na economia de produção, o foco era o básico: casar para ter filhos, trabalhar para ganhar a vida. Na economia de serviço, o centro passou a ser o afeto no casamento e o serviço prestado no trabalho, como consultoria e gestão. Hoje, na economia da identidade, o trabalho é onde o indivíduo busca se tornar a melhor versão de si mesmo, encontrar propósito, pertencimento e significado.

Esse contexto exige repensar a forma como enxergamos as relações no trabalho. “Você não chega ao trabalho como um conjunto separado. Você traz o seu eu integral, todo o seu histórico de relacionamentos, que molda como você interage e é percebido”, explicou Perel. Ela chama isso de “currículo não oficial”, que convive e se sobrepõe ao currículo formal.

Entre os pilares que sustentam relações no ambiente profissional, ela destaca quatro fundamentais: confiança, pertencimento, reconhecimento e resiliência coletiva. A confiança responde a perguntas cruciais: “Você me apoia? Posso discordar? Posso correr riscos? Posso confiar em você?”

O pertencimento é o sentimento de fazer parte de algo maior que o indivíduo, como uma equipe ou empresa, que dá suporte e base. O reconhecimento está ligado ao valor e respeito dados ao papel da pessoa dentro do sistema. Já a resiliência coletiva é a capacidade do grupo de reagir flexivelmente diante das incertezas.

Atrofia social, “vida sem contato” e solidão na hiperconectividade

A palestra abordou como a tecnologia e as mudanças sociais recentes têm impactado essas relações. A terapeuta descreveu um fenômeno que chamou de “atrofia social”, que significa a perda gradual das habilidades e oportunidades de interação social genuína, especialmente as que não são roteirizadas ou mediadas.

“Quando você perde a rua, onde as crianças brincavam livremente e aprendiam a negociar e a conviver, você perde uma parte essencial da negociação social e da tolerância”, afirmou. Esse espaço público intermediário, ou “nível médio”, onde pessoas diferentes se encontravam, está desaparecendo, e com ele a prática da convivência com o diferente.

A pandemia e o avanço da tecnologia ampliaram uma vida que Perel chamou de “contactless living” — uma existência marcada pela ausência de contato físico e pela substituição das interações presenciais por conexões digitais. Essa mudança tem provocado um paradoxo: a hiperconectividade trouxe proximidade, mas aumentou a solidão.

“Estamos mais sozinhos, mesmo cercados de pessoas. A perda ambígua é estar presente fisicamente, mas emocionalmente ausente — você vê alguém, mas não está realmente com essa pessoa. Essa intimidade artificial é uma das principais causas do burnout hoje”, explicou. Como exemplo, citou o envio de mensagens automáticas e superficiais, como um “feliz aniversário” via Slack, que não gera conexão real.

Tecnologia, inteligência artificial e as novas expectativas para os relacionamentos

Esther Perel abordou o impacto da inteligência artificial e outras tecnologias digitais no modo como as pessoas se relacionam. A IA, segundo ela, representa a mais recente revolução tecnológica, mas é a primeira da qual temos consciência ativa.

Ela citou um caso curioso: um homem que criou uma versão de IA de Perel para conversar com ela em momentos de crise emocional. Essa IA, disse, é “fantástica”: está sempre disponível, nunca se cansa, dá bons conselhos, mas tende a dizer ao usuário “tudo o que ele quer ouvir”, validando sentimentos sem questionamento.

Esse fenômeno, para Perel, altera profundamente nossas expectativas. “Internalizamos a perfeição algorítmica, a expectativa de interações sem atrito. Quando enfrentamos tensões e conflitos naturais das relações humanas, ficamos paralisados, sem saber como lidar”.

Essa dificuldade contribui para o aumento da polarização, vista como a rejeição da complexidade dos dilemas atuais. “É mais fácil colocar o outro grupo como inimigo do que sustentar sentimentos contraditórios e complexos dentro de nós mesmos”.

A crise social por trás da crise de saúde mental

A terapeuta provocou a reflexão ao afirmar que a crise de saúde mental pode ser um sintoma de uma crise social maior. Ansiedade, depressão e burnout seriam respostas naturais a um mundo incerto e marcado pelo medo e pelo individualismo.

“O fardo do indivíduo nunca foi tão pesado. Cada decisão, cada responsabilidade está nas costas da pessoa. Isso aumenta a solidão, mesmo em tempos de hiperconectividade”, disse. E isso traz à tona o conceito de “perda ambígua” — a sensação de desconexão que ocorre mesmo quando estamos próximos fisicamente.

Essa perda compromete os quatro pilares das relações humanas no trabalho e na sociedade, prejudicando confiança, pertencimento, reconhecimento e resiliência coletiva.

Liderança, cuidado e inclusão

A palestra trouxe ainda reflexões sobre a nova liderança no ambiente de trabalho. “Líderes não precisam ter todas as respostas, mas devem criar contêineres seguros, espaços onde as pessoas possam expressar ansiedade e incerteza com clareza e estrutura”.

Perel ressaltou a importância de empresas que valorizam o cuidado, especialmente com funcionários que acumulam responsabilidades familiares. “Cuidadores chegam ao trabalho já carregando uma carga pesada. Organizações que oferecem suporte, dignidade e flexibilidade são mais atraentes e eficazes”, afirmou.

Na mesma linha, destacou a importância da diversidade e da inclusão, não apenas como questões identitárias, mas como elementos centrais para o fortalecimento das relações. “É preciso espaço para grupos minoritários se reunirem e dialogarem, mas também para trocas entre diferentes”, afirmou.

O futuro das relações e da terapia no trabalho 

Perel projetou um futuro onde o coletivo ganhará mais peso que o diádico (a interação um a um). A pandemia e a tecnologia, como Zoom e dispositivos móveis, fortaleceram interações individuais, mas diminuíram rituais e espaços que promovem a conexão.

Ela prevê que as pessoas buscarão criar pequenos grupos significativos para suprir necessidades básicas de pertencimento e solidariedade. “A terapia individual pode desaparecer, dando lugar a formatos grupais, que expressam melhor a nossa humanidade”, afirmou.

Para o trabalho, isso significa que habilidades relacionais são a nova linha de frente. “Inteligência relacional é a vantagem competitiva. Construir confiança, pertencimento e resiliência coletiva é a tarefa mais urgente para empresas hoje”.

O Brasil: entre tradição e modernidade digital

Com olhar transcultural, Perel destacou o Brasil como uma sociedade com tradição comunitária forte, ainda mais social que os Estados Unidos. No entanto, alertou para os riscos impostos pelas redes sociais e pela vida digital.

“O fato de a solidão ser discutida no Brasil é um sinal alarmante de que algo está mudando”, afirmou, sugerindo que mesmo culturas históricas de comunidade enfrentam os efeitos da atrofia social e do isolamento.

 

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