(Klaus Vedfelt/Getty Images)
Instituto Millenium
Publicado em 23 de maio de 2025 às 18h48.
*João Loyola
Desde a promulgação da Lei nº 13.874/2019, a chamada Lei de Liberdade Econômica, o Brasil vem testemunhando uma transformação silenciosa, porém profunda, no modo como estados e municípios encaram a relação entre governo e iniciativa privada. Inspirada em princípios liberais clássicos, como a liberdade contratual, a presunção de boa-fé e a intervenção mínima do Estado na economia, a lei representou uma inflexão após décadas de predomínio de uma cultura regulatória excessiva e centralizadora. Ao consagrar a livre iniciativa como direito fundamental e impor ao poder público o dever de remover entraves burocráticos, o diploma legal instaurou as bases de um novo padrão de governança: mais orientado ao cidadão, menos paternalista e mais funcional à lógica de mercado.
Contudo, sua efetividade não se deu de forma automática. A operacionalização da Lei exigiu atos administrativos concretos nos entes subnacionais, uma vez que alvarás, licenças sanitárias e ambientais são, em grande parte, de competência estadual e municipal. Foi neste ponto que se inaugurou uma nova dinâmica no federalismo brasileiro: uma espécie de corrida regulatória positiva, na qual os estados passaram a competir pela atração de investimentos por meio da criação de ambientes econômicos mais livres, previsíveis e desburocratizados.
O histórico recente comprova esse novo paradigma. O Paraná, por exemplo, já dispensou 771 atividades econômicas de alvarás e licenças, com meta de ampliar esse número para 1.014 CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas). Goiás lidera o ranking nacional, com 962 atividades de baixo risco liberadas para funcionamento imediato, enquanto o Piauí surpreendeu ao alcançar 908 atividades, reposicionando-se como polo emergente de liberdade econômica. Pernambuco, também no Nordeste, acompanha esse movimento, com 847 atividades liberadas.
Em Minas Gerais, a implementação da Lei teve início com o Decreto nº 48.036/2020, que classificou atividades conforme níveis de risco, prevendo a dispensa de exigências para aquelas de baixo risco (Nível I). Inicialmente alinhado às diretrizes federais, o Estado mineiro passou a expandir progressivamente esse rol com base em evidências dos benefícios práticos da medida: maior celeridade na abertura de empresas, fortalecimento de pequenos empreendedores e simplificação administrativa. O ponto alto ocorreu com o Decreto nº 49.013, de 3 de abril de 2025, que ampliou para 915 o número de atividades econômicas dispensadas de alvarás, superando São Paulo e alcançando a segunda posição nacional.
Diante dessa ascensão mineira, o estado de São Paulo intensificou estudos técnicos para ultrapassar a marca de mil atividades liberadas, demonstrando como a competição entre estados já não se dá apenas por incentivos fiscais, como foi comum nas décadas de 1990 e 2000, mas principalmente por eficiência regulatória. Essa mudança de paradigma desloca o foco da disputa interestadual: da concessão de favores casuísticos para o fortalecimento institucional da liberdade econômica.
Essa lógica competitiva vem se replicando também no plano municipal. Segundo levantamento do Instituto Liberal de São Paulo, Minas Gerais lidera com 558 dos seus 853 municípios (65,4%) já possuindo regulamentações próprias da liberdade econômica. São Paulo, segue com 534 de 645 (82,8%), enquanto Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo aparecem como destaques regionais, este último com impressionantes 93,6% de adesão municipal. Essa capilarização mostra que a liberdade de empreender vem se consolidando como eixo estruturante das políticas públicas locais, reforçando o papel dos municípios como agentes ativos do desenvolvimento econômico.
Sob a ótica da teoria liberal, essa concorrência regulatória é não apenas desejável, mas também funcional como limite espontâneo ao intervencionismo estatal. Conforme advertia Friedrich Hayek em A Constituição da Liberdade (1960), o excesso de normatizações por parte do poder público gera insegurança jurídica, inibe a inovação e favorece práticas arbitrárias. O novo arranjo federativo brasileiro, ainda que informal, coloca em prática o modelo hayekiano de "governança pelo mercado", no qual os agentes econômicos, ao escolherem onde empreender, induzem os governos a adotar condutas mais racionais e competitivas.
Dentro dessa perspectiva, é fundamental destacar que a burocracia excessiva não é apenas um problema de eficiência administrativa, mas um vetor estrutural de corrupção. O acúmulo de normas e exigências concede ao Estado margem ampla de poder discricionário, isto é, a capacidade de decidir caso a caso, sem critérios objetivos e universais. Essa brecha normativa cria terreno fértil para favorecimentos, extorsões informais e negociações de bastidores que subvertem o princípio da impessoalidade administrativa. Ao reduzir regras, simplificar processos e automatizar decisões com base em critérios objetivos (como faz a lógica da liberdade econômica) diminui-se a assimetria de poder entre o Estado e o empreendedor, minando as bases da corrupção sistêmica.
Além disso, esse cenário concretiza uma aplicação prática do modelo de Tiebout, formulado pelo economista Charles Tiebout em 1956, segundo o qual os indivíduos “votam com os pés” ao migrar para localidades que melhor oferecem o pacote de bens públicos desejado, incluindo, no caso brasileiro contemporâneo, um ambiente institucional mais amigável ao empreendedorismo. Assim, pessoas físicas e jurídicas tendem a buscar estados e municípios onde a regulação é mais leve, os trâmites mais simples e o respeito à liberdade econômica mais efetivo. A migração empresarial entre entes federativos passa a ser guiada não apenas por incentivos fiscais, mas por aspectos como previsibilidade legal, celeridade burocrática e segurança institucional.
Essa dinâmica migratória, embora ainda incipiente no Brasil, já é perceptível em diversos setores, especialmente entre pequenos e médios empreendedores que preferem estabelecer suas atividades em regiões com legislações locais mais ágeis e transparentes. Trata-se de um comportamento racional que, à luz da teoria de Tiebout, transforma o federalismo em um mercado de políticas públicas, no qual os entes subnacionais competem pela “preferência revelada” dos cidadãos e empresas. Estados e municípios que se mostram mais eficientes em garantir um ambiente de negócios favorável tendem a atrair mais talentos, investimentos e receitas, enquanto os que mantêm entraves e rigidez regulatória ficam para trás.
Mesmo sem qualquer emenda constitucional ou reforma institucional formal, observa-se a emergência de um mecanismo eficaz de accountability horizontal. Governadores e prefeitos são naturalmente pressionados a ajustar suas políticas ao que os investidores e cidadãos demandam: previsibilidade,
agilidade e respeito à liberdade. Estados que insistem em manter estruturas excessivamente burocráticas tendem a perder protagonismo econômico, forçando revisões internas de seus marcos regulatórios. A concorrência federativa, portanto, transforma-se em um limitador natural à hipertrofia estatal, sem depender de rupturas legais ou embates legislativos.
Para que essa transformação alcance patamares sustentáveis e sistêmicos, é indispensável que a desburocratização regulatória seja acompanhada por uma reforma administrativa mais ampla, de caráter liberalizante. A simplificação normativa e a digitalização de processos precisam ser refletidas também na estrutura do serviço público, exigindo uma profunda mudança de mentalidade funcional, da cultura do controle pela desconfiança para uma lógica orientada ao resultado, à eficiência e à prestação de serviços ao cidadão. Uma reforma administrativa que valorize meritocracia, desonere a máquina e elimine distorções estruturais do funcionalismo é condição necessária para consolidar a liberdade econômica como política de Estado, e não apenas como diretriz eventual de alguns governos locais.
Esse processo também corrige uma distorção histórica do federalismo brasileiro: a homogeneização vertical imposta pela União. Agora, os entes subnacionais recuperam protagonismo por meio da autonomia decisória, mas, paradoxalmente, são guiados por um novo tipo de padronização, a padronização por eficiência, estabelecida pelo próprio mercado. A liberdade econômica passa, assim, a ditar os termos de uma nova racionalidade pública: não a do favor estatal, mas a da concorrência institucional.
Caso essa tendência se consolide, o Brasil poderá ver surgir, dentro de seu próprio território, verdadeiras ilhas de liberdade, prosperidade e dinamismo, por sua própria performance, forçarão seus vizinhos a se atualizar. Trata-se de uma transformação institucional sem ruptura, mas de efeitos cumulativos e potencialmente irreversíveis: um Estado mais enxuto, responsivo e amigável ao empreendedor, não por imposição ideológica, mas por necessidade competitiva.
*João Loyola é formado em administração e em Gestão de Seguros, Pós-Graduado em Gestão Estratégia de Seguros pela ENS, é sócio sucessor da Atualiza Seguros, trabalha na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de MG e é associado do IFL-BH.