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Colunista
Publicado em 14 de outubro de 2025 às 22h01.
Uma fala recente do ministro Fernando Haddad sobre a estabilidade dos servidores públicos reacendeu um antigo debate: é possível combinar eficiência com progressismo na gestão do Estado? Ao sugerir que a permanência de servidores dependa de métricas claras de desempenho e qualidade, Haddad quebrou um tabu em sua base política e trouxe à tona um ponto de tensão fundamental: de um lado, a pressão da sociedade por serviços ágeis e eficazes; de outro, a resistência de associações de classe que veem nesse discurso um risco de precarização de direitos historicamente conquistados.
Por que esse debate é relevante? Porque no Brasil consolidou-se uma ideia de que a aprovação num concurso público é, por si só, mérito suficiente para garantir um salário vitalício, independentemente da entrega de resultados ou da necessidade futura do cargo. Segundo o Atlas do Estado Brasileiro (Ipea), dois em cada três servidores têm estabilidade até a aposentadoria, contra média de apenas 28% nos países nórdicos, conforme o relatório Government at a Glance 2025 (OCDE). Esse modelo de gestão de recursos humanos com estabilidade excessiva acarreta um custo total (lifetime cost) elevado: os cerca de 12 milhões de servidores consomem mais de 14% do PIB, valor superior aos investimentos em educação (6%) e saúde (4%), segundo dados do Convergência Brasil.
A esse peso orçamentário se soma outro motivo de preocupação: eficiência. Nosso Judiciário, por exemplo, é um caso emblemático - apesar de consumir 1,6% do PIB (o mais caro do mundo, segundo o Tesouro Nacional), apresenta taxa de casos pendentes por 100 habitantes pelo menos cinco vezes maior que a de países europeus, de acordo com o EU Justice Scoreboard (Comissão Europeia). O tempo médio entre ajuizamento e sentença ultrapassa dois anos - três vezes a média europeia, segundo pesquisadores da Universidade de Brasília. Esse exemplo ilustra bem a lógica de como custos altos e baixa eficiência reduzem significativamente o “retorno sobre tributo” (o quanto o cidadão recebe em serviços públicos por cada real pago em tributos).
Além dos custos, o atual modelo de concursos públicos cria distorções de incentivos que desperdiçam talentos e destroem valor econômico. Ao combinar altos prêmios (salários acima do setor privado e estabilidade vitalícia) com baixas chances de aprovação, o sistema empurra jovens educados para anos de cursinhos em vez de atividades produtivas. Esse desperdício tem efeito macroeconômico marcantes: segundo os economistas Tiago Cavalcanti e Marcelo Santos, servidores públicos recebem 19% a mais que profissionais de perfil semelhante no setor privado. Reduzir esse diferencial poderia, via realocação de talentos, elevar o PIB em até 11% sem comprometer a oferta de serviços públicos. Se a taxa de desligamento de servidores públicos com baixo desempenho for de 1% ao ano, a queda na demanda por concursos públicos poderia gerar crescimento adicional da economia de 3%.
Diante desse quadro, não surpreende que a reforma do serviço público figure como um dos raros temas com consenso mesmo entre correntes políticas divergentes. A insatisfação com custos e ineficiências se reflete na opinião pública: pesquisa Datafolha encomendada pelo Movimento Pessoas à Frente mostra que 74% dos brasileiros acreditam que a profissionalização do serviço público ajuda no combate à corrupção e na melhoria dos serviços, enquanto 94% apoiam uma
gestão baseada em desempenho, com avaliações contínuas e mecanismos de recompensa ou responsabilização conforme o desempenho dos servidores.
Dado isso, como aumentar a eficiência e garantir melhor uso do dinheiro do contribuinte sem comprometer a qualidade dos serviços públicos? Experiências internacionais indicam que a tecnologia, especialmente a Inteligência Artificial, é parte central da resposta.
Na Albânia, por exemplo, o primeiro-ministro socialista Edi Rama lançou o agente de IA “Diella” (cujo nome significa “sol” em albanês) para supervisionar licitações públicas, com o objetivo de aumentar transparência e eliminar a corrupção nos processos de contratação governamental. A ferramenta não substitui servidores públicos, mas assume tarefas rotineiras, repetitivas e de baixo valor agregado (como análise de licitações, preenchimento de formulários e atendimentos básicos), liberando profissionais para funções mais estratégicas e tornando o Estado menos custoso no dia a dia.
Nos Estados Unidos, a Microsoft firmou acordo com o governo federal para fornecer gratuitamente soluções de IA em larga escala, permitindo a automação de fluxos de trabalho e análises de dados mais rápidas. A economia prevista é de US$ 3 bilhões apenas no primeiro ano, com investimento adicional em suporte técnico e capacitação. Em três anos, o impacto estimado ultrapassa US$ 6 bilhões. Esse exemplo demonstra como parcerias público-privadas podem modernizar o Estado e maximizar o retorno da tecnologia em benefício da população.
Essas experiências mostram que o Brasil, que atualmente discute no Congresso uma reforma administrativa, não pode ficar para trás. É essencial que o eixo da “transformação digital” (um dos quatro eixos da proposta sob discussão) inclua explicitamente a adoção responsável da inteligência artificial como principal alavanca para modernizar o serviço público. Não basta afirmar “vamos digitalizar”: é preciso explicitar que essa digitalização ocorrerá via IA, com diretrizes éticas claras, comitês de IA nos ministérios, relatórios públicos de impacto e monitoramento transparente de resultados.
Reformar o Estado brasileiro por meio da IA é uma agenda capaz de unir visões que historicamente se opõem. Para progressistas, um Estado mais eficiente libera recursos para políticas sociais que beneficiam os mais vulneráveis. Para liberais, a mesma tecnologia reduz gastos e aumenta a racionalidade do uso dos impostos. Em resumo, a IA pode ser a ponte entre um Estado que entrega mais e um Estado que custa menos. Não se trata de enfraquecer o Estado, mas de fortalecê-lo onde realmente importa; de liberar servidores de rotinas obsoletas e de devolver ao contribuinte o que lhe é de direito: serviços públicos de qualidade. O Brasil não pode perder a oportunidade de modernizar sua administração. É hora de debater, com coragem e responsabilidade, como trazer a inteligência artificial para dentro do setor público.