(José Cruz/Agência Brasil/Agência Brasil)
Instituto Millenium
Publicado em 9 de outubro de 2025 às 23h49.
*Fabrício Camozzato, associado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) e sócio da CKA Advocacia
O Brasil, com cerca de 80 milhões de processos judiciais pendentes em 2025, é campeão mundial de litigiosidade. Esse cenário, que consome em torno de 1,6% do PIB anualmente, conforme dados divulgados pelo Tesouro Nacional, é agravado por atropelos legislativos: reformas profundas aprovadas às pressas, sem debate amplo ou rigor técnico, que introduzem ambiguidades e conceitos vagos. Esses projetos não só perpetuam a insegurança jurídica, como também sobrecarregam o Judiciário, cuja jurisprudência vacilante – marcada por decisões contraditórias e lentidão em uniformizar entendimentos – falha em mitigar o caos. Sob uma ótica de mercado, essa instabilidade eleva o Custo Brasil, afastando investimentos privados em setores como tecnologia e infraestrutura.
Para ilustrar o problema, consideremos exemplos recentes, começando pela reforma do Código Civil. O Projeto de Lei 4/2025, protocolado em janeiro de 2025, altera mais de 1,1 mil artigos do Código Civil de 2002 – equivalente a 58,5% do texto original – e surge como uma tentativa de modernização das relações contemporâneas. A promessa de renovação ignora que o código atual já foi atualizado mais de 500 vezes desde 2002 para alinhar-se à Constituição de 1988. Juristas destacam que o projeto carece de demanda social e abusa de termos jurídicos abstratos: conceitos como “montante razoável” em indenizações ou “contratos assimétricos” transferem poder interpretativo aos juízes, minando a autonomia privada das partes. No projeto, as menções à “função social” do contrato e da propriedade crescem vertiginosamente, um conceito vago que prioriza intervenções estatais e pode anular cláusulas contratuais. Como resultado, o PL pode aumentar significativamente a litigiosidade, sobrecarregando tribunais já saturados e inibindo investimentos estrangeiros, receosos da conhecida insegurança jurídica do país.
O padrão de legislação vaga repete-se no PL da Inteligência Artificial (PL 2883/2023). Caso aprovado, criará a obrigação de que empresas do setor elaborem “avaliação preliminar” para aferir o “grau de risco” do sistema. Se classificado como de alto risco, o fornecedor deverá elaborar “avaliação de impacto algorítmico”. A ausência de definições precisas para esses termos gera insegurança jurídica, ampliando o potencial de litígios em um setor de ponta. Além disso, o artigo 27 prevê responsabilidade objetiva (independentemente de culpa) para danos causados por sistemas de alto risco, e culpa presumida nos demais casos, com inversão do ônus da prova em favor da vítima. Essa abordagem impõe riscos desproporcionais a desenvolvedores e operadores, desencorajando investimentos em um setor vital para a competitividade econômica, e possivelmente afastando o ingresso de serviços inovadores no país.
Se as prometidas reformas sobre o Código Civil e a regulamentação da inteligência artificial não fossem suficientes, lembremos que, caso aprovadas, essas legislações serão contemporâneas ao período de transição da reforma tributária, que, sob promessa de simplificação, exigirá dos contribuintes que convivam com dois sistemas tributários – antigo e novo – entre 2026 e 2033, além de um provável aumento da carga tributária. Essa dualidade tem tudo para impulsionar litígios, com previsões de aumento nos contenciosos fiscais a partir de 2026, conforme relatório elaborado por um grupo de trabalho nomeado pelo Superior Tribunal de Justiça. O documento intitulado “Impactos da Reforma Tributária no Poder Judiciário” estima que o volume de processos relacionados à transição poderia sobrecarregar o Judiciário com milhares de novas demandas, agravando a morosidade e os custos operacionais, e alerta para o potencial de triplicar o contencioso tributário atual.
Analisadas em conjunto, essas três frentes legislativas – civil, tecnológica e tributária –, sem prejuízo de tantas outras em discussão no Congresso Nacional, compõem uma tempestade perfeita contra o ambiente de negócios. As subjetividades no novo Código Civil e na lei de IA, somadas à complexidade da transição fiscal, poderão levar o Custo Brasil a outro patamar. Se a instabilidade jurídica brasileira já era um conhecido fator de desestímulo, a aprovação simultânea de mudanças tão profundas, mas apressadas e vagas, envia um sinal inequívoco ao mercado global: o risco de se investir no país aumentou. Com isso, o Brasil se arrisca a aprofundar sua dependência de uma economia primária, baseada em commodities, abdicando de se tornar um protagonista em setores de alto valor agregado, como tecnologia e inteligência artificial, que são hipersensíveis à insegurança jurídica.
Atropelos legislativos, portanto, não modernizam; paralisam. Para reverter esse cenário de estagnação, a solução não está em mais intervenção, mas em clareza e estabilidade. É imperativo que o legislador troque a pressa pela prudência e os termos vagos, como a etérea “função social”, pela precisão técnica que protege a autonomia privada e a liberdade de contratar. Sem priorizar a segurança jurídica como um pilar inegociável do desenvolvimento, o Brasil seguirá refém de si mesmo, sufocando a inovação e o crescimento econômico.