São Paulo (SP), 27/10/2024 - Eleitores comparecem para votação no segundo turno das eleições para prefeito no Escola Estadual Caetano de Campos. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil (Paulo Pinto/Agência Brasil)
Instituto Millenium
Publicado em 26 de maio de 2025 às 19h38.
Última atualização em 28 de maio de 2025 às 14h04.
Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou uma proposta de emenda à Constituição que pode transformar profundamente o sistema político-eleitoral brasileiro. O texto prevê o fim da reeleição para cargos do Executivo, a ampliação dos mandatos para cinco anos e a unificação de todas as eleições em um único pleito nacional.
Para discutir os impactos dessa mudança, o Instituto Millenium ouviu dois especialistas com visões diferentes sobre o tema:
➡️ Fábio Ostermann, cientista político, professor e mestre em Ciência Política pela PUCRS e em Administração Pública pela Harvard Kennedy School, defende o fim da reeleição como avanço institucional, mas critica a unificação das eleições e a ampliação dos mandatos. Segundo ele, há o risco de o debate local ser ainda mais ofuscado por temas macroeconômicos e nacionais. “As eleições municipais correm o risco de se tornarem secundárias ou até irrelevantes no cenário unificado”, comentou.
➡️ Gabriel Jubran, cientista político (UnB), pós-graduando em Direito Legislativo pelo IDP e sócio-diretor da Civitas Relações Governamentais, traz a perspectiva de quem atua nos bastidores do Congresso. Jubran é totalmente favorável à proposta como um passo importante para dar racionalidade ao sistema político, reduzir o custo das eleições e fortalecer o planejamento de políticas públicas.
Confira as entrevistas completas:
Instituto Millenium: O atual modelo de eleições a cada dois anos compromete a governabilidade e o foco das gestões públicas? Na sua visão, esse sistema interfere na capacidade de planejamento de longo prazo? Acredita que a reforma pode ajudar a criar um ambiente político menos eleitoral e mais programático?
Fábio Ostermann: Não há evidência que corrobore a tese de correlação - positiva ou negativa - de periodicidade eleitoral e efetividade da governança e gestão públicas. A frequência de pleitos eleitorais é, sem dúvidas, um dos menores problemas do nosso sistema político-eleitoral. A maioria esmagadora das grandes democracias do mundo tem eleições em dias distintos, geralmente em anos intercalados. A Suécia, um país com população do tamanho da do Rio Grande do Sul, é a exceção, e certamente nenhum cientista político sueco se arriscaria a atribuir a notória efetividade e estabilidade de seu sistema político à unificação das eleições.
Gabriel Jubran: O atual modelo de eleições faz com que o ocupante do cargo executivo trate o seu mandato como se fossem 8 anos, com um aval da população no meio do caminho, depois de 4. A estruturação de um mandato é pensada para 8 anos, e isso tem virtudes e defeitos gravíssimos. Por exemplo, calcula-se para que os primeiros 4 anos se tenha um pico de trabalho no primeiro ano e depois no ano eleitoral, pensando em entregas de obras. Então o meio do mandato é pensado para que se haja alguma mínima economia de verbas, para gastar no ano pré-eleitoral. E uma vez reeleito, a lógica se repete no início do mandato para que se tenha um 'boom' de trabalho, mas se perde, ao longo dos outros 2 anos, para que se tenha um outro boom de gastos para reeleger um sucessor. Então, há esse cálculo de que precisa ser de picos e de quedas de gastos, pensando nas eleições. E isso tem consequências diretas na lógica da gestão da política pública, porque você não tem uma continuidade nesses investimentos, mas sim um cálculo estratégico para que perto do período de eleição você tenha um ápice de aparecimento desse governante. E essa reforma pode ajudar a criar um ambiente político mais pragmático, no sentido de que, se o governante tem a ciência de que ele tem apenas aqueles cinco anos para trabalhar, ele vai estabelecer não uma lógica eleitoral pura, já que não é ele diretamente que vai estar na reeleição, e pensar em deixar o legado, concentrando essas atividades nesses cinco anos, para que, por exemplo, ele mesmo possa participar da maioria das inaugurações, sem deixar para um governante futuro. O ambiente se torna menos eleitoreiro.
IM: O fim da reeleição e a adoção de mandatos únicos de cinco anos para o Executivo podem incentivar gestões mais estruturantes e menos populistas? Há experiências internacionais que reforçam essa hipótese?
FO: O instituto da reeleição fracassou no Brasil. Ela não costuma ser um problema nos sistemas parlamentaristas, onde o presidente, o governador e, às vezes, até o prefeito não são eleitos diretamente, mas em virtude da formação de uma maioria parlamentar. A reeleição já começou errada quando a emenda 16/1997, proposta de maneira casuísta, beneficiando seu proponente e maior interessado, FHC, não trouxe um limite de reeleições não-consecutivas, como ocorre nos EUA. Com isso, se tornou trivial Brasil afora prefeitos e governadores eleitos e reeleitos que, por seu domínio da máquina pública, acabam fazendo o sucessor (com frequência, um parente um assessor próximo) para passar quatro anos formalmente fora, voltando posteriormente para mais dois termos de quatro anos. E assim seguem. Temos diversos casos Brasil afora, de prefeitos eleitos em 1996 que completarão em 2028 seu sexto mandato. É um nível de personalismo e patrimonialismo que corrói a nossa democracia.
GJ: O fim da reeleição e o mandato único de cinco anos podem incentivar essas gestões mais estruturantes, no sentido de que a preocupação deste governante tem que ser neste único mandato, e não mais a lógica da continuidade, como a gente tem visto aqui. Do ponto de vista internacional, a maioria das democracias no mundo permite reeleição, mas o fato é que a experiência brasileira com isso não é positiva, no sentido de que nesses anos, desde Fernando Henrique Cardoso, quando a reeleição foi instaurada, nós tivemos prisões de ex-presidentes, dois processos de impeachment, que deixam marcas significativas na história da política do país, e uma série de escândalos de corrupção, inclusive ligados, justamente, a essa disputa eleitoral da reeleição, da continuidade. Então, ainda que a experiência em outros países seja de reeleição, a experiência brasileira, nesse sentido, não é positiva. Um bom exemplo de onde não há reeleição é a Coreia do Sul. Por lá, há um mandato único, de cinco anos, e não se pode batalhar por outro. Nesse sentido, o governante concentra as suas ações em deixar um legado nesses cinco anos, e depois trabalha para que alguém do seu grupo, na sua lógica econômica e política, possa continuar aquele seu legado.
IM: A proposta elimina a reeleição no Executivo, mas a mantém no Legislativo. Essa assimetria faz sentido ou revela autobenefício dos parlamentares?
FO: Essa diferença faz menos sentido a cada dia, dado que o Legislativo - nas três esferas - tem assumido um protagonismo absolutamente indevido na dotação orçamentária em suas bases, por meio das emendas parlamentares. Se o propósito é limitar a dinâmica deletéria de uso da máquina pública para perpetuação no poder, porque não aplicar régua similar a deputados e vereadores? Mas ainda creio que o melhor arranjo institucional seja acabar com ou limitar radicalmente as emendas parlamentares individuais, mantendo sem limites de reeleição, como é na imensa maioria das democracias plenas mundo afora. Neste caso, a exceção à regra é a Costa Rica, uma das democracias mais estáveis do continente, e que impede a reeleição consecutiva para parlamentares.
GJ: Da minha perspectiva, uma discussão sobre limitações do número de mandatos no legislativo pode ser interessante, para que se evite, por exemplo, a permanência de certas oligarquias no poder. Mas o fato é que o legislativo é um poder minguado, entre uma série de decisões divididas entre um número de cadeiras. O poder executivo concentra todas as decisões na figura do governante, portanto é um poder muito personalístico. No poder legislativo, no caso do Brasil, nós estamos falando de 81 senadores, que juntos tomam as decisões desta casa, e na Câmara dos Deputados. Deputados, 513 deputados, que juntos tomam decisão. No poder executivo, nós estamos falando de um governador, de um presidente, de um prefeito que toma a sua decisão naquela localidade. De fato, houve um tratamento diferente, que não necessariamente seja o mais adequado, mas são poderes diferentes que merecem essas análises separadas. Eu creio que nem o Senado, nem a Câmara devem interferir nessa questão do número de reeleições, até mesmo porque mexe no seu próprio interesse. Acho muito improvável que haja essa discussão nesse sentido. Mas uma coisa não pode interferir no fato de que é um avanço para o Brasil a possibilidade de se discutir o fim da reeleição para o poder executivo, por conta dessa característica personalística que mencionei anteriormente.
IM: A unificação das eleições pode ajudar a reduzir a polarização política no Brasil, ao afastar o país de um clima eleitoral permanente? O espaçamento maior entre os pleitos pode contribuir para um debate público mais maduro?
FO: Pelo contrário: a unificação das eleições contaminará as eleições municipais, tradicionalmente mais pragmáticas e menos ideológicas, com a polarização do pleito federal. Ademais, vejo com maus olhos a possibilidade de passarmos 5 anos sem a atenção do povo para os temas que mudam sua realidade.
GJ: A grande vantagem nessa discussão é uma questão logística e de permissão da continuidade do trabalho do legislativo. O que isso significa? A primeira menção que eu faço é a questão do custo de uma eleição. Não só o custo imposto a cada candidato, que de fato é muito dinheiro envolvido, mas também o custo para a justiça eleitoral e para o país de realizar uma eleição. A gente está falando da mobilização de todos os cidadãos do país, da logística de entrega das urnas e de mobilização de diversos setores da sociedade para acompanhar essas eleições. É um custo bilionário, e isso acontecer a cada dois anos não necessariamente reflete na melhor prática eleitoral das experiências internacionais. Isso é uma questão que merece ser analisada. E o segundo ponto é que na prática, Brasília para a cada dois anos. E aí há uma dificuldade muito grande em se continuar o trabalho legislativo. Reformas estruturantes, grandes projetos precisam ser feitos, por exemplo, nos anos ímpares, que não há eleição. Porque mesmo aquelas eleições municipais, há diversos parlamentares que disputam as eleições e os outros, em sua maioria, que não disputam, são partícipes muito importantes. Porque estão trabalhando com a classe política nas suas bases eleitorais, nas suas regiões eleitorais, e estão diretamente envolvidas na eleição dos seus aliados. E que depois de dois anos, são estes aliados, nas prefeituras e na Câmara de Vereadores, que vão trabalhar pela reeleição de seus deputados, senadores, presidentes. Portanto, o país para a cada dois anos do ponto de vista da produção de leis e do avanço dos projetos, e isso é muito ruim. A unificação das eleições tem um mérito de fazer com que esses cinco anos de mandato sejam de fato dedicados, sem interrupção, à discussão dos projetos importantes para o país.
IM: Você acredita que o eleitor brasileiro consegue diferenciar adequadamente pautas nacionais e locais em uma eleição unificada?
FO: Hoje a atenção do eleitor médio é voltada de forma desproporcional à eleição presidencial. Os demais cargos em disputa se estapeiam por uma fatia da limitada atenção do eleitor. Difícil sustentar que a inclusão de mais dois cargos na disputa, em uma eleição que já conta com até 6 escolhas dentre milhares de opções irá melhorar as coisas. As eleições municipais serão ainda mais esquecidas.
GJ: Quando falamos do eleitor brasileiro, estamos invocando um personagem de categoria abstrata que não existe como uma característica única. O Brasil são Brasis, como dizia Darcy Ribeiro. Estamos falando de uma população muito diversa, inclusive do ponto de vista socioeconômico, o que traz percepções muito diferentes sobre o papel cidadão do voto e a importância das eleições. Então, creio que continuará havendo confusão, como já acontece, no sentido de que a classe política é tratada como uma coisa só. Essa generalização que faço é carregada de equívocos — o que é evidente, como ocorre com toda generalização. Mas, do ponto de vista do imaginário coletivo brasileiro, não há uma divisão clara para a população sobre quais são as competências de cada esfera: da União, dos estados, dos municípios. Muitas vezes não se sabe exatamente o que faz um vereador, por exemplo. E não será a unificação ou a separação das eleições que trará maior clareza sobre isso. O que pode realmente mudar essa realidade é o papel cívico e cidadão das pessoas, aliado a processos educacionais mais eficazes.
IM: A reforma prevê uma transição escalonada até 2034. Esse prazo é necessário para assegurar estabilidade institucional ou pode enfraquecer o impacto da proposta?
FO: O prazo é excessivo e escancara o caráter casuístico da proposta. Até lá, muita coisa pode mudar. Inclusive a reversão de uma mudança como esta.
GJ: Para reformas estruturais como essa, é necessário haver uma transição para que os processos se adequem. Não são apenas essas leis feitas a nível de Brasília, no Congresso Nacional e na Presidência da República, que precisam ser modificadas, mas uma série de normas infralegais. A estrutura da justiça eleitoral vai ter que ser adaptada para isso, e a lógica partidária e eleitoral da classe política e da população tem que ser alterada, tanto do ponto de vista do preparo quanto da concepção sobre o que significa a unificação das eleições. Portanto não há de fato prazo exequível ainda neste ano para se aprovar já pro ano que vem - porque a eleição teria que estar toda alterada até outubro, do ponto de vista de já estar sancionado e aprovado pelas duas casas. Mas também, para a próxima eleição, é necessário que haja tempo hábil de reestruturação das normas infralegais e da própria sociedade como um todo. Portanto, é razoável que se estabeleça um prazo de transição um pouco mais longo. E como a gente está falando de eleições de cada quatro anos, as opções são essas, 4, 8, 12, 16, 20. E dentro dessas possibilidades, a norma estabelecida no relatório é razoável sobre esse aspecto de se haver um prazo necessário para adaptação.
IM: Quais os principais obstáculos que a proposta deve enfrentar no Congresso? Como a sociedade civil pode atuar nesse contexto?
FO: Creio que a discussão precisa ser dividida. Cada um dos pontos tem seus prós e contras, que precisam ser avaliados a partir da experiência brasileira e internacional. Mas creio que temos algo próximo de um consenso em relação ao fim da reeleição. Os outros pontos me parecem invencionice e, como tal, devem ser vistos com prudência e cautela pela opinião pública e pela sociedade civil.
GJ: A questão da resistência fica muito clara, do ponto de vista da análise política, porque o enxugamento dos mandatos dos senadores deve levar muitos deles a resistirem, na votação em plenário, à redução de 8 para 5 anos. Aqueles que defendem essa mudança argumentam que ficar 10 anos fora do mandato, caso percam as eleições, compromete a continuidade de seus projetos, e que a unificação seria importante nesse contexto. Portanto, boa parte da resistência virá dos próprios senadores, que discordam da proposta de redução e defenderão a manutenção de um mandato com o dobro da duração daquele previsto para os deputados — ou seja, 10 anos contra 5. Outra resistência é do próprio poder executivo, os prefeitos, os governadores, inclusive a Presidência da República deve levar com muita seriedade essa questão, porque trata dos seus próprios interesses. Da perspectiva do presidente Lula em si, não há muito impacto, porque ele poderia concorrer à reeleição ano que vem normalmente, e essa seria a sua última eleição, até mesmo por conta da sua idade avançada. Agora, do ponto de vista do partido dele, pode haver uma estruturação de resistência, pensando já nos candidatos à sucessão, depois que Lula sair da presidência. Então, vai haver resistência, sem dúvida, principalmente no Senado Federal.
IM: Que impactos a reforma pode ter nas estratégias partidárias, especialmente na formação de alianças e escolha de candidatos ao Executivo?
FO: Certamente. O fim da reeleição fará com que os partidos já pensem com mais afinco no sucessor, antes mesmo da eleição, em especial na hora de escolher os vices. A unificação das eleições trará um desafio nas formações das chapas, visto que será necessária a mobilização de uma quantidade abissal de candidatos na mesma eleição. Aí, aliás, pode estar um dos principais empecilhos à unificação eleitoral: caciques partidários terão trabalho para formar nominatas muito maiores, com a mesma quantidade de pessoas dispostas a concorrer em cada ano. Realmente não me parece que a economia de recursos proporcionada pela unificação compense as perdas decorrentes da confusão que se armará com esta jabuticaba. Se o problema é o custo das eleições, que se mude o sistema eleitoral, distritalizando as campanhas e tornando-as mais baratas. O sistema distrital misto, aos moldes de grandes democracias como Alemanha e Japão, já resolveria este problema.
GJ: A estratégia partidária será completamente redesenhada, porque, atualmente, o político que perde uma eleição em um ano pode disputar outro cargo dois anos depois — não necessariamente com o objetivo de exercer esse novo cargo da melhor forma do ponto de vista da gestão pública, mas, muitas vezes, apenas para se manter visível aos olhos do seu eleitorado. Isso acontece com frequência nas eleições gerais: o candidato que perde uma eleição geral, dois anos depois disputa a eleição municipal e, após mais dois anos, ele deixa a prefeitura para concorrer novamente nas eleições gerais. Por isso, do ponto de vista da gestão pública, a unificação das eleições se mostra bastante interessante dentro desse novo desenho institucional, no qual o candidato deverá cumprir integralmente os cinco anos para os quais foi eleito. Com essa mudança, a estratégia eleitoral será completamente transformada. A lógica da competição se intensifica: quem perder a eleição ficará mais tempo fora do jogo. A disputa passa a ser, portanto, uma aposta de tudo ou nada a cada cinco anos. Aqueles que ficarem de fora terão que redesenhar sua atuação na oposição e nos bastidores, buscando se manter relevantes no debate público.