Congresso Nacional (Leandro Fonseca/Exame)
Colunista
Publicado em 1 de junho de 2025 às 14h28.
Falamos muito da polarização e de seus riscos. Mas talvez uma questão pouco debatida seja o quanto estamos fragmentados. A política virou um condomínio. E cada ator puxa para o seu lado.
Mesmo o “Centrão” — que nunca foi um bloco ideológico ou programático — tinha, no passado, um eixo de estabilidade. Durante o governo FHC, o PFL cumpria esse papel de partido âncora. Nos primeiros governos Lula, foi o MDB. Esses partidos funcionavam como um eixo de organização das coalizões.
Hoje, esse papel não existe mais. O Centrão não tem mais um núcleo condutor. E mais: os próprios partidos se fragmentaram de dentro para fora. Os grandes núcleos condutores acabam sendo os presidentes das Casas e, a depender do tema, os líderes partidários — que muitas vezes têm imensa dificuldade em construir consenso interno.
Pegue o PSD. No Paraná, mais próximo do bolsonarismo. Na Bahia, aliado do governo Lula. Em São Paulo, apoia o governador Tarcísio, enquanto em Brasília comanda ministérios estratégicos no governo federal — como os de Alexandre Silveira e Carlos Fávaro. Seu presidente, Gilberto Kassab, não está errado em flutuar nessa polarização. Afinal, para fazer o partido crescer — um dos objetivos centrais de qualquer presidente partidário — é necessário entender e navegar essas diferenças regionais.
O Republicanos, partido da base evangélica e do governador de São Paulo, Tarcísio Freitas, também tem um ministro no governo Lula — Silvio Costa Filho.
Esse padrão se repete em outras siglas. A fragmentação não é apenas entre partidos — ela é interna, com feudos estaduais, lideranças setoriais e alianças contraditórias convivendo sob o mesmo CNPJ partidário. Faz parte, mas é um sintoma da nossa política partidária que merece atenção.
Como chegamos a esse ponto? Há pelo menos dois fatores centrais. O primeiro é a própria polarização. Para que um partido tenha relevância nacional hoje, precisa se adaptar às preferências e aos temas de interesse que mudam radicalmente de uma região para outra. A polarização acentuou essas diferenças e forçou os partidos a uma flexibilidade cada vez maior nos estados — o que, inevitavelmente, mina a coesão nacional das siglas.
O segundo fator são as emendas parlamentares. Elas deram uma nova confiança ao parlamentar, que passou a ter muito mais autonomia para “tocar a própria vida política”, muitas vezes sem depender diretamente do governo — e, em vários casos, nem da boa vontade do próprio partido. Claro que o partido continua sendo fundamental, sobretudo em tempos eleitorais, com o controle do fundo partidário e do fundo eleitoral. Mas as emendas criaram um ambiente em que o parlamentar consegue sobreviver mesmo quando está desalinhado com colegas de partido ou com a orientação da legenda em temas específicos. Isso tornou ainda mais difícil a construção de consensos internos.
Em Brasília, mesmo numa reunião de líderes partidários, ninguém mais sabe quem consegue “entregar” a própria bancada. O líder virou um gerente de interesses díspares.
No Congresso, a multiplicação das bancadas temáticas reforça o cenário. Agro, evangélica, bala, municipalista, saúde, ambientalista — cada uma opera como um microparlamento paralelo, com interesses próprios e pouca disciplina partidária. Puni-los não faz sentido, sob o risco de perder correligionários importantes e afastar novas lideranças.
O orçamento reflete essa fragmentação. As emendas parlamentares, que já foram complemento, tornaram-se o cimento da governabilidade. Cada parlamentar atua como um “mini-executivo”, operando diretamente sobre a execução orçamentária.
Nas redes sociais, a fragmentação é ainda mais radical. Não existe mais um centro narrativo da política nacional. Cada grupo vive em sua bolha: o WhatsApp do agro, o Telegram do bolsonarismo, o Instagram do progressismo jovem, o YouTube da nova direita.
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. Na Itália, a fragmentação partidária levou a mais de 70 governos em 75 anos de República, com partidos como a Lega e o Forza Italia operando em alianças regionais contraditórias. Na Espanha, o PSOE e o PP convivem com estruturas e alianças divergentes em seus redutos regionais, enquanto partidos como Vox e Podemos pulverizaram o sistema. Em Israel, a governabilidade depende de coalizões hiperfragmentadas e de partidos que funcionam como federações internas.
A ciência política já tentou explicar esse processo. Richard Katz e Peter Mair, ao descreverem os “partidos cartéis”, mostraram como partidos modernos tendem a perder coesão ideológica e programática, funcionando cada vez mais como redes de grupos internos voltados à captura de recursos e à manutenção de poder.
Partidos esvaziados de identidade passam a operar como estruturas fragmentadas, reféns de lealdades setoriais e territoriais — um retrato que se encaixa cada vez mais no cenário brasileiro.
No Brasil, essa fragmentação múltipla — partidária, regional, corporativa, social e midiática — tem efeitos profundos. Ela complica a construção de consensos, atrapalha reformas estruturantes e torna a política cada vez mais imediatista e orientada ao varejo.
Governar um país assim exige uma nova estratégia. Não basta mais articular com líderes partidários. É preciso operar em rede, construir pontes invisíveis e negociar em múltiplos planos ao mesmo tempo. Um trabalho de inteligência política sofisticada — e exaustiva.
Mas o risco maior da fragmentação não é apenas a ingovernabilidade. É a perda da capacidade de pensar o Brasil como projeto coletivo.
Um país que só se enxerga em pedaços não consegue construir um futuro comum.