Se olharmos além das superfícies, veremos que se abre um espaço raro para o Brasil se reposicionar (Leandro Fonseca)
Ex-ministro do Turismo (Governo Temer), cientista político pela Universidade Americana de Paris, Sênior Fellow do Milken Institute (EUA)
Publicado em 14 de outubro de 2025 às 14h48.
O Brasil está mal-acostumado: tende a simplificar o que é, por natureza, complexo. É da nossa tradição reduzir a alta política, inclusive a mundial, ao jogo das relações pessoais, dos sentimentos e do nosso prisma local. Isso se torna ainda mais evidente quando o presidente dos Estados Unidos faz crer que tudo é pessoal. Mas não é. Ele é, acima de tudo, um negociador atípico que usa a imprevisibilidade como instrumento de poder em um teatro calculado de força.
Durante algum tempo, acreditou-se, no Brasil, que Donald Trump “gostava de Bolsonaro” e “não gostava de Lula” e que, por isso, o país fora penalizado com tarifas de 50%. Parte da imprensa e das redes sociais repetiu essa narrativa, como se relações pessoais pudessem determinar a complexa política norte-americana nesta quadra de reassentamento do poder global. Mesmo havendo alguns acessos, jamais existiu consistência estratégica que sustentasse essa crença. Os Estados Unidos são hoje um sistema hipercomplexo, com tudo em jogo e mais indecifrável do que nunca.
A realidade é mais densa. O governo americano age abertamente em favor de suas empresas, enquanto, no Brasil, muitas vezes, são as empresas que acabam trabalhando para o governo. Essa inversão ajuda a entender a diferença entre pragmatismo e personalismo. Os interesses em jogo vão além de simpatias ideológicas, envolvem importadores de aço, alumínio, café e suco de laranja, cadeias industriais complexas e minerais críticos que sustentam a economia verde e digital. São múltiplas camadas de complexidade que não cabem em slogans.
Se olharmos além das superfícies, veremos que se abre um espaço raro para o Brasil se reposicionar, longe de discursos antiamericanos, antiglobalistas ou contra Israel, discursos que nem a China nem a Rússia fazem e que o Brasil não precisa fazer. As grandes questões internacionais, como o dólar ser reserva de valor e meio de troca global, estão além da escala simbólica do Brasil. Não cabe tratá-las como se estivéssemos escolhendo lados de torcida.
As críticas do presidente Lula aos Estados Unidos, no Brics, percebidas em Washington como de tom antiamericano, refletem o mesmo equívoco cometido no governo anterior, quando Bolsonaro fez declarações antichinesas. Nenhum desses movimentos serve ao Brasil. Ambas as abordagens sacrificam o interesse nacional em nome de ideologias ultrapassadas. O país precisa de estabilidade e previsibilidade, precisa de reformas e investimentos, não de gestos de confronto que fragilizam sua imagem de parceiro confiável.
O governo Lula foi, em parte, beneficiado pela política de confronto verbal da família Bolsonaro, que tratava tarifas e sanções como disputas pessoais, quando, na verdade, refletiam resistências americanas a discursos antiocidentais e à propalada “venezuelização”. Agora que a poeira baixou, surge a oportunidade de reconstruir uma política externa fiel às tradições do Itamaraty, guiada pela sobriedade e pela defesa dos interesses permanentes do país.
Nossa tradição ensina que o Brasil deve agir com autonomia e equilíbrio. Mesmo durante o regime militar, o Itamaraty manteve canais abertos com diferentes blocos. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, o país dialogou com os Estados Unidos e a China sem subserviência nem hostilidade.
O mundo atual é muito mais instável, mas o contexto dos diálogos brasileiros segue como se não percebêssemos a profundidade dessa instabilidade. Vivemos múltiplas complexidades simultâneas, guerras regionais com potencial de expansão, crises energéticas e alimentares, disputas tecnológicas entre Estados Unidos e China, aceleração da inteligência artificial, mudanças climáticas, endividamento global e volatilidade financeira. É possível que este período venha a ser lembrado como uma era de guerra ainda sem nome.
Como alerta o embaixador Rubens Barbosa, “o imediatismo político brasileiro impede que o país trate suas vulnerabilidades e compreenda as complexidades internacionais”. Essa talvez seja nossa maior fragilidade, uma cultura que evita o planejamento e substitui a estratégia pelo improviso.
A isso se soma o alerta de Warren Buffett, o planeta está superendividado, países, estados e corporações. O déficit americano já supera 37 trilhões de dólares, e as tarifas recentes buscam reduzir o peso dessa dívida e reindustrializar o país. Mas, para Buffett, a crise é global, o mundo carrega 300 trilhões de dólares em dívidas sobre um PIB de 100 trilhões. Nessa conjuntura, o Brasil poderia se destacar, pois reúne o que falta ao mundo, energia limpa, minerais críticos, território estável e potencial logístico inexplorado. Num cenário de bolhas e volatilidade, o Brasil pode ser o destino natural dos investimentos reais, se criar um ambiente seguro e competitivo.
A COP 30, que o país sediará em Belém, deveria ser a oportunidade de propor ao mundo um projeto concreto para a Amazônia, integrando conservação, desenvolvimento, financiamento e bem-estar social. Falar em “futuro verde” não basta, é preciso propor soluções concretas, com liderança e ambição.
Em vez disso, seguimos distraídos com disputas ideológicas importadas. Quando parte do debate nacional tenta reinterpretar a política americana a partir da origem cubano-americana do senador Marco Rubio, ou quando analisa o anticastrismo da Flórida como se o Brasil devesse aderir a ele, corremos o risco de cair para trás. O que é Cuba perto do Brasil? Qual o peso da Venezuela atual na economia global? Da mesma forma, não faz sentido reproduzir o sentimento anti-China do bolsonarismo, afinal, a China é a líder de todo o Oriente. Nada disso serve ao interesse nacional.
O Brasil é, segundo todas as pesquisas, um dos países mais simpáticos do planeta, de enorme riqueza humana e material. Nossa cultura, criatividade e amabilidade são ativos estratégicos. Mas, em vez de valorizá-los, estamos desperdiçando-os em polarizações estéreis, quando poderíamos nos apresentar como exemplo de equilíbrio, sustentabilidade e convivência. Basta olhar, e se fizéssemos no turismo o que fizemos no agro? Quantas Infraeros e WEGs teríamos se não sabotássemos o nosso país?
Para sair dessa arapuca, o Brasil tem um caminho, pensar grande. Hoje, isso significa ter um plano de país, visível para o mundo, algo que vá além de governos e ideologias, integrando economia verde, educação, infraestrutura e inovação. Um país sem plano é refém do improviso e responde às crises com soluções simplistas de curto prazo.
Com um plano nacional de longo prazo, o Brasil poderá melhorar a vida de seu povo, dar sentido coletivo e mostrar que há um caminho possível que atravesse governos e ciclos. Esse é o desafio do nosso tempo, entender as complexidades, lidar com elas e transformá-las em oportunidades sob a ótica do interesse nacional.
Se não olharmos para o mundo respeitando suas complexidades e contradições, seremos engolidos por elas, nas suas dimensões externas e internas. O que podemos fazer de mais certeiro é tratar o mundo como ele é, com suas turbulências e contradições, protegendo nossas vulnerabilidades e projetando nossos potenciais. Olhar para frente e não para trás, conscientes da diferença que existe entre o nosso tamanho real e o nosso tamanho potencial. A maior diferença do mundo.