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Para além da rede de proteção: O salto para a autonomia

Com as melhores das intenções, estruturamos sistemas de proteção social que, em sua essência, mantêm a tutela sobre seus beneficiários

Cartão do Bolsa Família: O benefício deve permanecer como o piso de proteção incondicional. A proposta é criar uma camada adicional, voluntária e habilitadora, um "vaso comunicante" entre a assistência e a autonomia do indivíduo (José Cruz/Agência Brasil)

Cartão do Bolsa Família: O benefício deve permanecer como o piso de proteção incondicional. A proposta é criar uma camada adicional, voluntária e habilitadora, um "vaso comunicante" entre a assistência e a autonomia do indivíduo (José Cruz/Agência Brasil)

Regina Esteves
Regina Esteves

CEO da Comunitas e colunista

Publicado em 9 de outubro de 2025 às 18h03.

Última atualização em 9 de outubro de 2025 às 18h04.

No imaginário brasileiro, o sucesso das políticas sociais é frequentemente medido pela sua capacidade de construir uma rede de proteção robusta. Programas como o Bolsa Família são celebrados, com razão, por terem resgatado milhões da miséria imediata, garantindo o mínimo para a sobrevivência.

Essa é uma conquista civilizatória inegável. Mas, uma vez que a queda livre é contida, a pergunta que se impõe é: e o próximo passo? Como transformamos a rede de proteção em um trampolim para a autonomia?

A questão central é que, com as melhores das intenções, estruturamos sistemas que, em sua essência, mantêm a tutela sobre seus beneficiários.

De um lado, temos o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que acolhe e distribui a renda, uma porta de entrada para a estabilidade.

Do outro, disperso e desconectado, está o Sistema Nacional de Emprego (SINE), um universo paralelo para quem busca qualificação e trabalho. Para o cidadão, isso se traduz em um labirinto de guichês, formulários e lógicas distintas, um fardo cognitivo para quem já vive sob o estresse da escassez.

Essa fragmentação não é apenas ineficiente. Ela revela uma filosofia subjacente: a de que uma política combate à pobreza e outra, separadamente, lida com o trabalho. A primeira é vista como essencial e protetiva; a segunda, como um caminho opcional e árduo. O resultado é que a conexão entre garantir o sustento e ampliar as capacidades raramente se concretiza de forma sistêmica.

A experiência internacional oferece um contraponto esclarecedor, não como um modelo a ser copiado, mas como uma fonte de inspiração.

Na Alemanha, o Jobcenter unifica o pagamento do benefício (Bürgergeld) com um plano de desenvolvimento individual. O cidadão não apenas recebe o recurso; ele sai com um técnico de referência e, se necessário, com um Bildungsgutschein – um voucher que financia o curso, o transporte e o material.

Na França, o sistema France Travail integra quem recebe a renda mínima a um plano de ação, e o cidadão possui uma conta pessoal de formação (Compte Personnel de Formation), um saldo em euros que ele próprio utiliza para escolher e pagar cursos qualificados ou certificar competências que desenvolveu no dia a dia do trabalho.

No Reino Unido, o National Careers Service conta com Work Coach que, individualmente, ajuda a traçar metas realistas dentro de um plano pactuado.

O que une esses arranjos é um princípio radicalmente diferente: a fusão da proteção com a capacitação em uma única porta de entrada.

O Estado não se apresenta como um conjunto de repartições, mas como um parceiro que oferece, no mesmo lugar, o sustento e as ferramentas para construir o futuro.

O foco muda da mera transferência de dinheiro para o investimento na pessoa. O instrumento-chave é o que dá poder ao indivíduo: um direito portátil à qualificação, seja na forma de um voucher ou de uma conta pessoal.

Abordagem para além do assistencialismo

Essa abordagem transcende o debate sobre assistencialismo. Trata-se de uma política de liberdade, no sentido que o economista Amartya Sen daria ao termo. Renda garante a ausência de privação; habilidades e certificações expandem o conjunto de escolhas reais que uma pessoa pode fazer.

Não se trata de forçar um emprego a qualquer custo, mas de fortalecer o indivíduo com as capacidades para que ele possa navegar um mercado de trabalho em constante transformação.

As evidências de grandes experimentos sobre renda básica, como os realizados pela GiveDirectly no Quênia ou um piloto nacional na Alemanha, reforçam essa visão.

A preocupação comum de que o dinheiro sem contrapartidas geraria ociosidade não se materializou. Pelo contrário: as pessoas investiram em pequenos negócios, em educação para os filhos e em melhorias para suas casas. Quando se confia nas pessoas, elas tendem a tomar decisões que melhoram suas vidas a longo prazo.

Integrar essas duas pontas no Brasil não significa tornar o Bolsa Família condicional ao trabalho. O benefício deve permanecer como o piso de proteção incondicional. A proposta é criar uma camada adicional, voluntária e habilitadora: um "vaso comunicante".

A questão não é a falta de recursos; o país já mobiliza um volume considerável em estruturas como o Seguro-Desemprego, o abono salarial e outros fundos de amparo. O desafio é repensar a arquitetura desses benefícios para financiar um direito individual ao desenvolvimento, um "Crédito para a Autonomia".

A porta de entrada poderia evoluir para um "Centro de Cidadania", onde o acolhimento de nível básico do CRAS se integra à orientação para o futuro. Nesse espaço, o cidadão não apenas resolveria suas urgências, mas co-criaria, com um orientador, um plano de desenvolvimento, ativando seu crédito para as habilidades que fazem sentido para sua trajetória.

A diferença é sutil, mas significativa. Passamos de uma política que oferta cursos padronizados para outra que apoia as escolhas individuais do cidadão. Deixamos de focar no que o Estado oferece e passamos a priorizar o que as pessoas desejam construir e como podem ser apoiadas nesse processo.

Mas é importante lembrar que a qualificação não se sustenta sem educação. Falar de autonomia exige falar também de aprendizagem ao longo da vida.

É nesse ponto que a formação deixa de ser apenas uma política de emprego e passa a ser uma política de desenvolvimento humano. Cabe ao Estado articular suas políticas de proteção social com a educação básica, técnica e continuada, criando um percurso que permita ao cidadão transitar da estabilidade para a autonomia de forma planejada, consistente e sustentável.

Superar a miséria foi o grande desafio brasileiro do século XXI. O próximo, talvez mais complexo, é construir um sistema que confie em seus cidadãos, que invista em seu potencial e que lhes entregue não apenas os meios para sobreviver, mas as ferramentas para florescer. É hora de construir não apenas uma rede de proteção, mas um trampolim para a autonomia.