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Projeto já mapeou a geração de R$ 250 mil em renda para alunas a partir do empreendedorismo e oportunidades de trabalho
Repórter de ESG
Publicado em 30 de outubro de 2025 às 05h54.
As joias que Gisele Lasserre usa não são comuns. O colar é feito de teclas de teclado. Os brincos, de memória RAM. Aos 48 anos, ela carrega no corpo os símbolos do que construiu nos últimos oito anos: a Tech Girls, um projeto que nasceu da própria dor de ser excluída no mercado de tecnologia e que já formou 670 mulheres, doou 450 notebooks e arrecadou 2 toneladas de lixo eletrônico.
"Senti na pele os efeitos positivos e negativos da tecnologia", conta Gisele, que construiu carreira no mercado corporativo liderando projetos digitais. "Apesar de ser facilitadora, a tecnologia tem um efeito seletivo, acaba excluindo pessoas que não têm condições de participar desse mundo", diz. O problema começou quando, mesmo entregando resultados, sua equipe de desenvolvedores passou a questioná-la por não ter formação técnica. "Aquilo me consumiu. O sentimento foi: 'vão me mandar embora'. A equipe estava desconfortável, não por falta de entregas, mas pela ausência de um certificado de tecnologia."
Aos 40 anos, Gisele fez um novo curso superior, agora em tecnologia. Após se graduar, pediu demissão e voltou para Curitiba, sua cidade natal, após anos em São Paulo. Lá, começou a dar aulas na periferia da cidade e logo percebeu: as regiões não tinham laboratórios com computadores, muito menos acesso à internet. Foi então que começou a mobilizar antigos colegas para trazer equipamentos — alguns funcionando, outros não. "Peguei a ideia de dar destino para os 'inservíveis'."
O clique aconteceu quando as alunas chegavam ao curso de programação sem sequer ter e-mail. "Muitas nem sabiam o que era programação", lembra Gisele. Foi aí que ela pensou em unir o lixo eletrônico e tecnologia de uma forma diferente: produzindo acessórios femininos a partir de componentes descartados. "Quando conseguem montar joias com teclado e memória RAM, se entusiasmam e pensam que tecnologia é para elas. É uma forma de envolver a aluna e falar na linguagem dela que a tecnologia é algo transformador", explica.
Hoje, a Tech Girls desenvolve projetos em cinco estados brasileiros. O curso de Imersão Digital dura 42 horas-aula, distribuídas ao longo de dois meses e meio. A jornada começa com as alunas criando as bijouxtech — colares, brincos e pulseiras feitos com componentes eletrônicos descartados. É o primeiro contato lúdico com a tecnologia, uma forma de derrubar o medo sobre a área.
O uso da economia criativa no processo, a partir das joias feitas com materiais de tecnologia, não é apenas um artifício estético. "Mulheres que chegam no projeto têm urgência de gerar renda, demanda resultados rápidos. Quando desenvolve produto social como as bijouxtech, sai com algo tangível", explica Gisele.
"É uma ferramenta que conecta o entender delas de tecnologia ao nosso. São pessoas que querem aprender tecnologia sem sofrer. Todas têm bagagens, medos, traumas. É lúdico, leve, gostoso, que você pode colocar o seu tempero", conta.
Depois das bijoux, vem o módulo de empreendedorismo digital, onde as alunas aprendem a criar vitrines virtuais e expor produtos em plataformas como o Magazine Luiza — uma forma de gerar renda rápida, já que muitas não podem se dar ao luxo de só estudar.
Gisele Lasserre, da Tech Girls: projeto já deu nova vida a 2 toneladas de lixo eletrônico
Em seguida, o curso avança para desenvolvimento de software e manutenção de notebooks. É nessa etapa que elas mergulham de verdade na tecnologia da informação, aprendendo a recuperar os equipamentos que estavam destinados ao lixo. Ao final, cada aluna aprovada recebe o notebook que ajudou a consertar durante o curso.
Embora a maioria dos projetos defina a idade mínima de 14 anos, não há idade máxima: o curso já formou alunas de até 79 anos. "Surpreende muito a garra das alunas", diz Gisele e cita um exemplo: em Curitiba, o projeto formou pacientes em tratamento oncológico. Uma delas relatou: "Minha rotina às terças e quintas — dias em que acontecem as aulas — era acordar, ir para o hospital, tomar quimioterapia e ir para o curso. Chegava abatida, cansada, mas queria fazer o curso. Tive informação do médico que tinha um prazo de vida de seis meses, mas optei por estar aqui. Prefiro estar pensando e progredindo do que estar me consumindo pela doença", disse.
A urgência do projeto da Tech Girls ganha dimensão quando analisada à luz dos números do setor de tecnologia no Brasil. Segundo dados do IBGE, as mulheres são minoria entre os concluintes de cursos de tecnologia no país. Em 2012, elas representavam 17,5% dos formandos em cursos de TI — percentual que caiu para 15% em 2022. No mercado de trabalho, as mulheres ocupam apenas cerca de 20% dos postos no setor.
Dados do Novo CAGED ainda revelam que, entre 2020 e 2024, a participação de mulheres nas ocupações de engenheira de computação, administradora de TI e analista de TI ficou abaixo de 23%. Apesar do aumento de admissões femininas no período, as mulheres contam com taxas superiores de desligamento e barreiras maiores para evolução de carreira na comparação com os homens.
Do lado da demanda, o cenário é urgente: a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais aponta um déficit de 532 mil profissionais de TI no Brasil até 2027. O setor prevê a criação de quase 800 mil novas vagas até 2027.
"As empresas já sofrem esse efeito porque a indústria de tecnologia trabalha fazendo uma briga de roubar profissionais. Vários saem de uma empresa para outra, pulam de emprego, por conta da escassez de profissionais altamente qualificados", explica Gisele.
Para Gisele, a presença feminina nos times de tecnologia não é apenas uma questão de justiça social, mas de qualidade dos produtos desenvolvidos. "As mulheres trazem bagagens de vida e olhares para soluções que são complementares às visões dos homens. Quando a empresa constrói times que tenham o espectro das mulheres, desde a concepção de produtos até soluções de TI, vejo que as soluções envolvem criatividade. É muito da mulher resolver problemas em casa: abrir a geladeira e pensar o que sobrou para fazer almoço, montar uma combinação dos itens para não jogar fora. A gente tem esse instinto", afirma.
Além do impacto social, a Tech Girls endereça um problema ambiental crítico. Segundo o Global E-waste Monitor 2024, o Brasil gerou mais de 2,1 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos em 2022, o que equivale a mais de 10 kg por habitante. O destino desse lixo é alarmante: apenas cerca de 3% do lixo eletrônico gerado no país é descartado corretamente. Pesquisa da Green Eletron aponta que cerca de 85% dos brasileiros têm lixo eletrônico acumulado em casa, com baixa adesão ao descarte formal.
O que é lixo eletrônico e como descartar de maneira correta?A Tech Girls já arrecadou 2 toneladas de lixo eletrônico, que foram transformadas em ferramentas de aprendizado e produtos para geração de renda. "Trabalhamos com logística reversa, e atendemos a aspectos ambientais enquanto projeto social", destaca Gisele. Em 2023, o projeto recebeu a premiação internacional Women in Tech, considerado o "Oscar" dos projetos no mundo que contribuem para mulheres em tecnologia.
Gisele Lasserre: "Mulheres trazem bagagens de vida e olhares para soluções que são complementares às visões dos homens"
Além das 670 mulheres formadas e dos 450 notebooks doados, a Tech Girls já mapeou a geração de R$ 250 mil para as alunas a partir do incentivo ao empreendedorismo e trabalho. Mas Gisele aponta que os números são ainda maiores. "Contamos com três vezes desse número [670] porque em casa há uma troca do aprendizado das aulas. Muitos ali começam a atuar nesses temas mesmo fora do curso. Tem efeito replicador. Filho acompanha as anotações e prende também."
Das alunas formadas, 120 já estão trabalhando em Tecnologia da Informação. O projeto mantém um software proprietário para oferecer transparência às empresas parceiras, com indicadores de performance que permitem acompanhar o impacto real da iniciativa.
Apesar dos resultados comprovados, Gisele aponta que o principal desafio da Tech Girls é conseguir apoio financeiro e doações de equipamentos eletrônicos das empresas. "Muitas pessoas que querem estar envolvidas com o projeto, estar no ecossistema, mas quando pedimos uma ação prática, não acontece", conta.
Em São Paulo, as aulas da TechGirls acontecem durante as terças e quintas-feiras das 14h às 17h30 na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID), no Tatuapé. As inscrições para o programa podem ser feitas gratuitamente a partir do site oficial do programa.