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Negociadores da presidência brasileira correm contra o tempo para apresentar nova versão do documento até 4h da manhã. (Sérgio Moraes / COP30)
Editora ESG
Publicado em 18 de novembro de 2025 às 22h37.
Está prevista para a madrugada desta quarta-feira, 19, a apresentação de uma nova versão do documento do "Mutirão Global", cujo rascunho foi publicado na manhã desta terça-feira, 18.
Negociadores da presidência brasileira passaram o dia inteiro em consultas com 19 grupos de países e devem trabalhar até meia-noite - ou além - para refinar o material.
"Talvez feche amanhã até 4 da manhã", afirmou reservadamente uma negociadora da equipe brasileira, sobre o cronograma apertado para apresentar uma nova versão do texto que deve definir o legado da COP30.
Um primeiro documento de 58 parágrafos, publicado hoje às 7h30, trazia múltiplas opções para praticamente todos os temas controversos.
Em suas dezenas de escolhas entre colchetes, o rascunho revelou divisões profundas que persistem nas negociações climáticas globais. Mas, surpreendentemente, a recepção inicial foi positiva.
"A notícia boa é que todos acham que é base para negociação. Ninguém falou 'joga fora'. Isso é um ótimo resultado", explicou a negociadora brasileira.
Segundo ela, ao longo do dia a presidência perguntou repetidamente aos grupos: "Podemos seguir para negociar?". E a resposta, invariavelmente, foi sim.
O otimismo cauteloso, porém, oculta a magnitude dos desafios. Não por acaso, o texto brasileiro oferece entre três e cinco opções para quase todos os pontos sensíveis; uma estratégia deliberada que não representa indecisão, mas sim flexibilidade máxima para criar espaço de negociação.
Se há um ponto onde as tensões se concentraram nesta terça-feira, foi o parágrafo 35, sobre transição justa. O texto propõe uma mesa redonda ministerial de alto nível sobre "diferentes circunstâncias nacionais, caminhos e abordagens" para a transição climática.
A segunda opção (a mais ambiciosa) vem em um tom mais explosiva: países discutiriam caminhos que incluam superar progressivamente a dependência de combustíveis fósseis e interromper e reverter o desmatamento.
"Para alguns países, as opções 1 e 2 são 100% linha vermelha. Outros consideram linha vermelha só a opção 2", revelou outro negociador brasileiro.
A divisão não poderia ser mais clara. De um lado, nações que querem evitar qualquer menção a combustíveis fósseis; de outro, aquelas que veem a linguagem como essencial.
Muitos países sugeriram ainda durante as consultas uma linguagem mais suave ou uma terceira opção completamente nova - em um sinal inequívoco de que o texto precisará ser significativamente modificado para avançar.
O impasse é particularmente delicado para o Brasil. Ao juntar "combustíveis fósseis" e "desmatamento" no mesmo parágrafo, o país está, implicitamente, equiparando a dependência de petróleo à dependência de destruição florestal.
O chamado "mapa do caminho" para transição energética - uma das principais apostas brasileiras para a COP30 - já conta com apoio declarado de 84 países, segundo negociadores.
Porém, nas consultas formais desta terça-feira, a proposta virou "linha vermelha total" para alguns blocos. O problema não está tanto no conceito, mas nos detalhes operacionais.
A opção 1 do parágrafo 44 propõe uma "consideração anual dos relatórios de síntese das NDCs" (contribuições nacionalmente determinadas) que incluiria linguagem sobre "transição para longe dos combustíveis fósseis", "triplicar energia renovável" e "parar e reverter o desmatamento até 2030".
Efetivamente, criaria uma espécie de "mini-stocktake" anual, mecanismo de pressão constante sobre países para aumentarem ambição - exatamente o tipo de coisa que grandes emissores e petro-estados querem evitar a todo custo.
"Tem países que querem apenas reafirmar o que foi decidido em Dubai, sem criar novos processos", explicou a fonte brasileira. A referência é ao consenso da COP28, que pela primeira vez mencionou "transição para longe dos combustíveis fósseis", uma vitória que muitos países relutam em expandir.
Se o parágrafo 35 divide parcialmente, os parágrafos 49, 50 e 57 concentram talvez as maiores divergências de toda a COP30.
Todos tratam do mesmo tema espinhoso: como operacionalizar o compromisso de US$ 1,3 trilhão em financiamento climático até 2035.
As opções vão do altamente ambicioso, num "plano de ação juridicamente vinculante" para implementação do artigo 9.1 do Acordo de Paris, ao completamente vago: "sem texto".
Entre esses extremos, há propostas para criar fluxos de trabalho técnico, mesas redondas ministeriais anuais e uma "Facilidade de Belém para Implementação" focada em reduzir riscos de investimento.
A questão fundamental permanece sem resposta: os US$ 300 bilhões acordados em Baku são piso ou teto?
Países desenvolvidos os tratam como conquista máxima; países em desenvolvimento, como ponto de partida mínimo.
Agora, o texto brasileiro tenta navegar entre essas posições irreconciliáveis oferecendo mecanismos para "escalar" financiamento, sem jamais especificar de onde virá o dinheiro adicional.
"Deveria ser a COP da adaptação, todos querem avançar, mas o financiamento vira tema", lamentou uma fonte próxima às negociações, capturando uma das grandes ironias da COP30.
A proposta brasileira de triplicar o financiamento para adaptação até 2030 - um dos poucos avanços concretos em relação a Baku - encontrou forte resistência nas consultas desta terça-feira. Países desenvolvidos prefeririam, no máximo, duplicar os recursos, como já estava previsto.
O impasse ameaça bloquear não apenas o texto de finanças, mas também as decisões específicas sobre adaptação. "O financiamento para adaptação é tema muito quente. Está bloqueando", confirmou o negociador brasileiro.
A resistência expõe uma contradição fundamental: a COP29 foi vendida como a "COP das finanças", mas acabou deixando a adaptação em segundo plano.
A COP30 tenta corrigir isso, mas esbarra na mesma parede: países desenvolvidos não querem assumir compromissos numéricos adicionais além dos já acordados.
Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa, observa que o rascunho reflete essa ambição. "Vale destacar que nesse rascunho temos tanto menção a mapas do caminho para a transição para longe dos fósseis, como a questão de elevar o financiamento para adaptação, inclusive tem a opção de triplicar", explicou.
Mas entre ter a opção no papel e conseguir aprová-la no plenário há um abismo que as consultas desta terça-feira começaram a mapear.
Um pouco escondido no meio do documento está o parágrafo 25, que oferece três opções sobre como caracterizar o compromisso de US$ 100 bilhões anuais que países desenvolvidos prometeram para 2020.
Opção 1: "Congratula-se pela conquista da meta de US$ 100 bilhões em 2022".
Opção 2: "Nota com grande preocupação que a meta de US$ 100 bilhões não foi cumprida, observando que apenas cerca de US$ 60 bilhões foram recebidos por países em desenvolvimento em média ao longo de dois anos, segundo o relatório de síntese de BTRs, que também revelou a falta de metodologia comum de contabilização".
Opção 3: Sem texto.
A divergência é total. Países desenvolvidos, baseados em dados da OCDE, afirmam que a meta foi cumprida em 2022. Países em desenvolvimento por sua vez, baseados em seus próprios relatórios de transparência, dizem que receberam menos de dois terços disso.
A raiz da desconfiança está nas diferentes metodologias. Enquanto países desenvolvidos contam empréstimos comerciais e financiamento "mobilizado" (não fornecido diretamente); países em desenvolvimento contam apenas valores efetivamente recebidos, descontando juros.
Fica um desafio central: como garantir que os US$ 300 bilhões de Baku serão reais, se os US$ 100 bilhões anteriores permanecem em disputa?
O mais provável, segundo fontes brasileiras, é que o texto final opte pela opção 3 — simplesmente evitar o tema. Mas essa não-solução apenas adia o problema para as próximas COPs.
Um dos parágrafos mais explosivos do documento, o 58, trata da interseção entre comércio internacional e ação climática. E oferece quatro opções que vão do técnico ao confrontacional.
A opção 3 propõe criar uma "Plataforma sobre Medidas Comerciais Restritivas Unilaterais Relacionadas à Mudança Climática".
O objetivo seria examinar "impactos transfronteiriços" dessas medidas, com atenção particular a países em desenvolvimento, e "permitir que países em desenvolvimento submetam informações sobre medidas comerciais restritivas unilaterais relacionadas ao clima que os afetam".
Não é preciso muito para ler nas entrelinhas: o alvo é o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM) da União Europeia, que entra em vigor em 2026 e taxará importações com base em sua pegada de carbono.
Para países como Brasil, China e Índia, o CBAM é protecionismo verde disfarçado. Para a UE, é um instrumento legítimo para evitar "carbon leakage" e proteger sua indústria de competição desleal.
Nas consultas desta terça-feira, segundo negociadores, ficou claro que a opção 3 não tem chance de prosperar. "A UE bloqueará absolutamente", disse uma fonte. O mais provável é que o texto final opte pela opção 1, de workshops técnicos sem criar estrutura confrontacional.
Mas a tensão não desaparecerá. Pelo contrário: quando o CBAM entrar plenamente em operação em 2026, a disputa comercial-climática pode dominar a agenda da COP31.
A presidência brasileira desenhou uma estratégia em duas etapas para evitar que negociações simultâneas em múltiplas frentes gerem caos.
"Se fizer ao mesmo tempo, não vai funcionar", explicou o negociador brasileiro. O texto do Mutirão Global, que concentra os temas mais políticos como transição justa, balanço global, adaptação, finanças e tecnologia, deve ser apresentado na quarta-feira.
Outras decisões mais técnicas ficarão para sexta-feira. "A equipe continuou para refinar esses textos. Pares ministeriais também estão trabalhando", afirmou a fonte, referindo-se aos ministros designados para facilitar negociações em temas específicos.
Essa estratégia, contudo, traz riscos. Se o Mutirão Global não avançar na quarta, toda a COP pode entrar em modo de crise. E o calendário já está apertado: tecnicamente, a conferência deveria terminar na sexta-feira, mas praticamente todos esperam que se estenda pelo fim de semana.
O presidente Lula deve se reunir com negociadores também nesta quarta-feira ou em algum dos próximos dias para ajudar a destravar impasses centrais.
"Ele ajuda sempre", disse a fonte brasileira, sem detalhar exatamente quando o encontro ocorrerá ou quais temas estarão na agenda presidencial.
Mas negociadores familiarizados com o processo indicam que o financiamento para adaptação deve estar entre as prioridades - possivelmente o tema onde a intervenção presidencial pode fazer mais diferença.
A lógica é política. Conseguir que países desenvolvidos aceitem triplicar adaptação seria uma vitória tangível para apresentar como legado da COP30.
É algo que pode ser quantificado, comunicado, e que beneficia diretamente os países mais vulneráveis - exatamente o tipo de resultado que a presidência brasileira precisa para declarar sucesso.
O problema é que isso exigiria países desenvolvidos irem além do já acordado em Baku. E com economias europeias estagnadas, EUA sob Trump, e resistência geral a novos compromissos numéricos, o espaço de manobra é estreito.
Lula terá que usar todo seu capital político (e talvez fazer concessões em outros temas) para conquistar esse avanço.
Há ainda uma tensão fundamental no texto do Mutirão Global que não passou despercebida por observadores experientes.
O parágrafo 14, que é categórico: "Resolve transitar decisivamente seu modo de trabalho de ênfase em negociações para foco na implementação do Acordo de Paris".
A mensagem é clara. Chega de discutir regras, agora é hora de agir. Numa tentativa de transformar a COP30 de conferência de negociação em conferência de implementação.
Mas o próprio documento oferece mais de 40 conjuntos de opções em colchetes. Ou seja, convoca mais negociações para praticamente todos os temas substantivos.
Natalie Unterstell notou essa característica pela manhã: "É um texto com 58 parágrafos e múltiplas opções, muito em linha com o que já havia sido colocado naquela nota".
A contradição reflete a realidade política que o Brasil enfrenta: quer elevar ambição e criar mecanismos de implementação, mas precisa de consenso de 198 países - muitos dos quais resistem ativamente a ambos.
A solução brasileira foi oferecer múltiplas opções para criar espaço de negociação. A presidência pode trocar: "vocês aceitam triplicar adaptação, nós abrimos mão de linguagem forte sobre combustíveis fósseis". Ou: "vocês aceitam o mapa do caminho, nós retiramos a plataforma sobre comércio".
É diplomacia climática clássica e também arriscada. Porque se o Brasil ceder demais para conseguir consenso, pode acabar com um texto que todos aceitam mas que ninguém considera transformacional.
Na segunda-feira à noite, horas antes da publicação do rascunho, o embaixador André Corrêa do Lago publicou a 11ª Carta da Presidência. No texto, ele já havia explanado a estratégia brasileira.
"Para quem não entendeu ou precisa entender melhor, vale consultar a carta do André de ontem", observou Unterstell. A carta servia como guia de leitura do documento que viria; uma tentativa de preparar o terreno e evitar surpresas.
Um tema que quase não apareceu nas discussões desta terça-feira, e que está notavelmente ausente das prioridades brasileiras , é o de perdas e danos.
O Fundo para Responder a Perdas e Danos, criado na COP27 e operacionalizado na COP28, permanece drasticamente subcapitalizado. O texto brasileiro apenas "destaca com preocupação a capitalização insuficiente" - exatamente a mesma linguagem de Baku.
Zero progresso. Zero novos compromissos. Zero mecanismos para mudar essa realidade.
A razão é pragmática: o Brasil sabe que países desenvolvidos já comprometeram US$ 300 bilhões no NCQG e não darão mais além disso.
Perdas e danos competiria com adaptação pelos mesmos recursos escassos. Então a presidência escolheu focar em adaptação, onde há mais chance de progresso.
Mas essa é uma escolha que terá consequências. Pequenos Estados insulares e países menos desenvolvidos (os mais afetados por perdas e danos) ficarão profundamente desapontados. E a frustração pode complicar negociações em outros temas.
Mesmo depois de um dia inteiro de consultas com 19 grupos de países, ainda que com recepção inicial positiva e apoio de 84 países ao mapa do caminho, a distância entre "base para negociação" e "decisão final" permanece imensa.
O texto que surgir dessa madrugada de trabalho dirá muito sobre a COP30. Se mantiver múltiplas opções, sinalizará que divisões persistem e negociações serão longas.
Se reduzir opções drasticamente, significará que a presidência está fazendo escolhas - e assumindo riscos políticos de desagradar alguns para agradar outros.
O mais provável, segundo veteranos das negociações climáticas, é um meio-termo: menos opções que o rascunho atual, mas ainda o suficiente para permitir negociações nos próximos dias. Um texto que fecha algumas portas mas mantém outras abertas.
"Podemos seguir para negociar?", perguntou a presidência brasileira aos grupos de países. Todos disseram sim.
Mas, como sempre nas COPs, o diabo está nos detalhes. Cada colchete, cada vírgula, cada verbo escolhido carrega peso político.