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André Corrêa do Lago, presidente da COP30: "À medida que a era dos alertas dá lugar à era das consequências, a humanidade se depara com uma verdade profunda: a adaptação deixou de ser uma escolha" (Rafa Neddermeyer / cop30)
Editora ESG
Publicado em 23 de outubro de 2025 às 11h00.
Última atualização em 23 de outubro de 2025 às 15h45.
A presidência da COP30 divulgou nesta quinta-feira, 23, sua oitava comunicação oficial à comunidade internacional, dedicada integralmente ao tema da adaptação climática.
O documento, assinado pelo embaixador André Corrêa do Lago, marca uma mudança estratégica ao posicionar a adaptação não como uma escolha que sucede a mitigação das emissões, mas como "a primeira parte de nossa sobrevivência".
A agenda é uma das prioridades em Belém do Pará e diz respeito especialmente a como os países em desenvolvimento irão se adaptar aos efeitos mais severos das mudanças do clima e tornar as cidades mais resilientes frente à nova realidade.
"À medida que a era dos alertas dá lugar à era das consequências, a humanidade se depara com uma verdade profunda: a adaptação deixou de ser uma escolha", escreveu Corrêa do Lago na carta, que traz um tom conceitual inédito ao comparar a resposta à tripla crise planetária com processos evolutivos da espécie humana.
A carta estabelece três prioridades centrais para Belém: fortalecer o multilateralismo, aproximar o regime climático da vida cotidiana das pessoas e acelerar a implementação dos compromissos assumidos.
O documento - que deve ser o último comunicado antes da conferência de Belém - enfatiza os críticos dados do Índice Global de Pobreza Multidimensional de 2025, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Dos 1,1 bilhão de pessoas em situação de pobreza aguda, 887 milhões vivem em regiões que já enfrentam ao menos um grande risco climático, e 309 milhões enfrentam três ou mais riscos simultaneamente.
+ Leia mais: Adaptação climática pode evitar perdas globais de US$ 850 trilhões até 2050
"A empatia nos obriga a perceber as vidas humanas por trás desses números – pequenos e microempreendedores perdendo seus negócios e sonhos, famílias deslocadas por enchentes, agricultores vendo seus campos secarem, crianças caminhando quilômetros em busca de água", afirma a presidência da COP30.
Sem adaptação, a mudança do clima se torna um multiplicador da pobreza, destruindo meios de subsistência, deslocando trabalhadores e aprofundando a fome.
O embaixador citou o filósofo africano Achille Mbembe e o conceito de "necropolítica" (uso do poder para decidir quais vidas são protegidas e quais consideradas descartáveis).
"Como formuladores de políticas e atores políticos, não somos menos responsáveis por atos de omissão", alertou.
A carta é explícita ao cobrar uma ampliação substancial dos recursos destinados à adaptação.
"Em minhas viagens, ouvi repetidamente que acelerar o financiamento é essencial para proteger comunidades e garantir conquistas de desenvolvimento -- e que esse precisa ir além de dobrar, podendo até triplicar, para atender às necessidades urgentes", afirmou Corrêa do Lago.
Apesar de compromissos sucessivos, o financiamento para adaptação ainda representa menos de um terço do total do financiamento climático, muito aquém das necessidades frente aos eventos extremos.
Em coletiva de imprensa nesta quinta-feira, 23, Corrêa do Lago e Ana Toni, CEO da COP30, ressaltaram que enquanto o financiamento climático tem a meta de chegar a 1.3 trilhão de dólares anuais voltados à mitigação, ainda não há a mesma clareza para as medidas de adaptação - o que torna o desafio ainda maior, mas não menos importante.
A presidência brasileira defende ainda que subsídios e empréstimos concessionais continuam fundamentais, especialmente para o desenvolvimento e a implementação dos Planos Nacionais de Adaptação (NAPs).
O modelo concessional é vantajoso por ser oferecido em condições mais favoráveis do que as do mercado em geral e comum em instituições multilaterais como bancos e agências de cooperação internacional.
Segundo Ana Toni, além de juros mais baixos e prazo mais longo para quitar a dívida, este tipo de financiamento permite aos países mais vulneráveis maior flexibilidade, pela possibilidade de direcionar os recursos para projetos sustentáveis sem comprometer suas finanças públicas.
O Banco Mundial estima que medidas robustas de adaptação podem gerar até quatro vezes o seu custo em benefícios econômicos.
O documento também destaca instrumentos inovadores como títulos de resiliência soberanos e subnacionais, trocas de dívida por resiliência e seguros contra perdas e danos.
Em entrevista à EXAME durante a reunião pré-COP em Brasília, Alice Amorim, diretora de programa da COP30, já havia destacado que o grande desafio é transformar a adaptação em uma agenda econômica compreensível e acessível.
"Existe toda uma economia da adaptação surgindo, que acontece de maneira até silenciosa e em muitos lugares descoordenada, mas como é que unimos tudo isso?", questionou na ocasião.
Amorim citou exemplos concretos que ilustram essa "economia da adaptação" ainda invisível: o trabalho da Embrapa com sementes resistentes ao calor, a retrofitagem de escolas em Belém pelo BID para reduzir temperaturas internas e melhorar o aprendizado, e as mudanças necessárias em compras públicas para incorporar critérios de resiliência.
"As pessoas não falam em siglas; falam de casas inundadas e colheitas perdidas, de economias locais em colapso após tempestades, de escolas e hospitais destruídos", ressaltou a diretora, destacando a necessidade de traduzir a agenda técnica em impactos reais na vida das pessoas.
E o Brasil surge como exemplo prático dessa urgência. As enchentes no Rio Grande do Sul demonstraram a necessidade de medidas como suspensão de dívidas e reconstrução já adaptada ao clima, exatamente o que pequenos estados insulares pedem há anos.
Um dos pontos centrais da carta é a cobrança por Planos Nacionais de Adaptação mais robustos e conectados ao sistema financeiro. Segundo Amorim, os NAPs são ainda pouco conhecidos, mesmo entre instituições financeiras que acompanham de perto as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs).
"Todo mundo conhece a NDC, todo mundo está esperando as NDC, mas existe a irmã da NDC, que é os NAPs, que ninguém conhece ainda", observou.
A diferença de tratamento é estrutural: enquanto a UNFCCC desenvolveu a infraestrutura para as NDCs pensando em todos os países, os NAPs foram criados inicialmente apenas para países em desenvolvimento.
Até 30 de setembro de 2025, 144 países em desenvolvimento já haviam iniciado o processo de elaboração de NAPs, e 67 os haviam submetido à UNFCCC – incluindo 23 países menos desenvolvidos e 14 pequenos estados insulares em desenvolvimento, além de 11 países desenvolvidos.
"Cumprimento esses países e convido outros a se somarem a essa corrente de resiliência coletiva, pois nossa comunidade internacional é apenas tão forte quanto seu elo mais frágil", escreveu Corrêa do Lago.
Natalie Unterstell, diretora-executiva do Instituto Talanoa, destaca que há um interesse crescente do setor privado em investir em adaptação – mas faltam sinais claros sobre como fazer isso de forma eficaz.
"O setor de seguros está desesperado", afirmou Unterstell em entrevista à EXAME. "Mesmo o modelo paramétrico não vai dar conta, porque não dá para parametrizar nada quando os eventos extremos se tornam a norma."
Ela menciona um evento em Nova York onde o investidor Jay Koh, do LightSmith Group, fez um apelo: "Não sabemos a taxa de juros, a taxa de crescimento, a inflação em 2035, mas sabemos que vai estar mais quente. Temos essa certeza. É por isso que queremos quer investir em adaptação agora."
"O pedido dele foi: precisamos que a COP30 nos dê um sinal claro sobre investimento em adaptação", relatou Unterstell.
Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa: "Quanto mais deixar para depois a adaptação, mais caro e difícil vai ficar"
Para a especialista, esta será uma "COP da resiliência" – não apenas da adaptação, mas da resiliência do sistema, do regime e da própria transição diante de tantos ataques e retrocessos. "É tanta ação contrária nesse momento, que eu acho que é um momento de reafirmação", disse.
A carta detalha os temas de adaptação que estarão no centro das negociações em Belém:
"O GGA não é apenas um item de negociação – é uma bússola econômica e moral", afirmou Corrêa do Lago. "Ministros da Fazenda e bancos de desenvolvimento devem tratar a adaptação como um instrumento central de política, não como caridade."
A oitava carta também enfatiza que a adaptação eficaz depende de uma governança multinível sólida, capaz de conectar compromissos globais às realidades locais.
Municípios e governos estaduais estão na linha de frente e são os primeiros a responder quando há escassez de alimentos, falta de água ou ondas de calor que sobrecarregam os serviços de saúde.
"Sua liderança é essencial para transformar marcos de referência em proteção concreta para comunidades, pequenos negócios, infraestrutura e meios de subsistência", destaca o documento.
Alice Amorim reforça essa visão: "A liderança é descentralizada entre municípios. Eles sentem a pressão diária, são os primeiros a responder."
Segundo ela, integrar a adaptação aos planos de desenvolvimento local, garantindo capacidade e financiamento para autoridades subnacionais, torna a ação mais eficaz, participativa e centrada nas pessoas.
Os bancos multilaterais de desenvolvimento estão mais avançados na agenda de adaptação do que bancos privados e nacionais, segundo Amorim. Coletivamente, eles já se comprometeram a destinar 50% dos recursos climáticos para adaptação – alguns, como o BID, já ultrapassaram essa meta.
"O CIF [Climate Investment Fund] é um exemplo: eles colocam 10 bilhões e os bancos multilaterais impactam mais 10", explicou. "É parecido com o que tentaram fazer com o fundo de florestas tropicais, mas para adaptação."
O desafio maior está no campo das finanças privadas, que ainda não têm clareza sobre como investir em adaptação de forma escalável e rentável.
A carta encerra com um apelo à cooperação internacional como princípio organizador da resposta global. "A humanidade não pode se dar ao luxo de novos atrasos decorrentes de potenciais falhas de confiança e cooperação", alertou o embaixador, lembrando que a COP30 marca o meio da década considerada pela ciência como decisiva para limitar o aquecimento a 1,5°C estabelecida pelo Acordo de Paris.
"Em Belém, onde os rios encontram o mar, renovemos a aliança entre a humanidade e a natureza – transformando vulnerabilidade em solidariedade, cooperação em resiliência e adaptação em evolução", concluiu Corrêa do Lago. "Mudando por escolha, juntos".