Gustavo Franco Foto: Leandro Fonseca Data: 06/03/2024 (Leandro Fonseca/Exame)
Economista
Publicado em 7 de julho de 2025 às 15h12.
O grande evento do mês é uma crise tão desnecessária quanto inesperada, ainda que não inteiramente surpreendente: o Decreto Legislativo 176/2025, de 26 de junho de 2025, sustou os decretos presidenciais de número 12.466/2025, 12.467/ 2025 e 12.499/2025, que alteravam diversas alíquotas do Imposto sobre Operações de Crédito (IOF/Crédito), Câmbio (“IOF/Câmbio”) e Seguro (IOF/Seguros).
Esta é apenas a terceira vez que um decreto legislativo susta atos do presidente da República. É um fato político muito importante, e que não deve ser confundido com as derrubadas de vetos presidenciais, que são bastante mais comuns, quase rotineiras.
O decreto legislativo está em outro patamar. É bem mais que um indicador de tensão no relacionamento entre o Executivo e o Legislativo. É uma crise.
O Executivo decidiu escalar o assunto e “judicializar” o decreto legislativo. É uma crise ampliada, uma aposta dobrada. A Advocacia-Geral da União (AGU) impetrou no Supremo Tribunal Federal uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC), buscando validar os decretos sustados. Não era bem o momento de elevar a tensão entre os poderes. Ainda há assuntos pendentes com respeito ao 8 de janeiro.
Lá de Portugal, onde se encontra a maior parte do Poder Judiciário, no evento conhecido como “Gilmarpalooza”, veio a primeira reação à decisão do Executivo: “depois reclamam do ativismo judicial ...”. Pois é.
O próprio ministro Gilmar Mendes atribuiu à crise a “falta de diálogo entre os poderes”, mas admitiu significativamente que o impasse é apenas “a ponta do iceberg”.
Tanto o STF, quanto o Legislativo parecem incrédulos, mas os relatos são de que há muitos bombeiros em ação. Ao mesmo tempo, é pública e deliberada a irritação do presidente da República, e as alegações pela quais “2026 já começou” e que o “nós contra eles” está de volta.
Será péssimo para o país que o Judiciário vá confrontar o Legislativo, e viver as represálias. Será ruim para todos, inclusive para o presidente da República. Como imaginar que o Executivo vá sair bem de uma crise entre os poderes? Justamente quando seu papel deveria ser o de apaziguar os poderes e o país, não estava na hora de a polarização diminuir?
Não é simples estabelecer como isso tudo começou, bem como os passos para desescalar a crise.
Hugo Motta talvez não devesse ter permitido que Haddad anunciasse que tinham chegado a um “acordo histórico”. Inclusive porque não era.
Haddad, de seu lado, subestimou resistências ao tomar ao pé da letra a sua própria fala pela qual “apenas corrige distorções óbvias”. E acrescentar ingredientes como as imprecações contra “super ricos” e o “pessoal da cobertura”.
Talvez o errado mesmo seja o arcabouço, como uma solução parcial e inferior para o problema fiscal brasileiro, um equilíbrio fabricado que não traz segurança ao mundo financeiro, nem cuja execução assegure um upgrade para as agências que medem risco soberano.
Vale o registro, sobre agências de classificação de risco, que a Moody’s que havia se adiantado às outras dando um outlook positivo ao Brasil. A partir de um rating Ba1 – um degrau abaixo do grau de investimento, e um degrau acima das outras agências –, reverteu sua posição a um “outlook neutro” no último dia de maio. Com isso, o “downgrade” se estendeu a todas as empresas, e a notícia ressoou pesada no começo de junho. O movimento teve como causa um diagnóstico implacável, conforme o comunicado: “o progresso mais lento do que esperado em endereçar a rigidez na despesa e a construção da credibilidade em torno da política fiscal a despeito da aderência às metas”.
Esse diagnóstico tinha sido confirmado logo antes, quando a “revisão bimestral” (na verdade o RARDP – Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias) da execução orçamentária de 2025 motivou o pacote fiscal que trouxe as alterações iniciais no IOF, dando início ao perigoso minueto que estamos a experimentar desde então.
A ironia era que o pacote era pequeno – R$ 50 bilhões – dos quais mais da metade era reprogramação orçamentária de rotina. A fonte de toda a cizânia posterior era o decreto do IOF, com receitas esperadas de R$ 20 bilhões em 2025.
O presidente da República parece entrar no enredo da crise apenas num segundo, ou terceiro momento, ao justificar o recurso ao STF como se estivesse ofendido, ou como se estivesse diante de um ataque à regularidade democrática: “Se eu não for à Suprema Corte, eu não governo mais o País.
Esse é o problema. Cada macaco no seu galho. Ele [o Congresso] legisla, e eu governo”.
Não foi uma boa decisão.
Data máxima venia, talvez tenhamos aqui uma outra coisa: o esgotamento do modelo de governo pelo qual o chefe do governo absorve o papel do ministro da economia, o qual fica obrigado a funcionar como “um assessor” do presidente da República, conforme a ferina observação de Gilberto Kassab.
Numa descrição mais técnica desse relacionamento, o presidente Lula explicou: “eu não quero um gênio para ser o responsável pela economia. A decisão para a economia tem que ser política. Eu quero um cara que execute a decisão política que o governo toma para a economia.”
Na verdade, talvez esteja aí o exato motivo pelo qual é muito difícil substituir Fernando Haddad.
Em certo momento, parecia que o afastamento de Haddad era a solução, inclusive o ministro entrou de férias entre 16 e 22 de junho, pois “tem buscado concentrar o usufruto de férias em semanas com feriados, como já ocorreu em outras ocasiões”.
É curiosa a referência aos direitos trabalhistas ao titular do pior emprego do mundo. Mas o ministro voltou à ativa, e as negociações caminharam para novas medidas fiscais.
A primeira foi uma medida provisória, editada em 25 de junho (MP 1.303), com diversa providências tributárias e exatos 74 artigos. Além da taxação de “bets” e de ativos virtuais, há a uniformização de alíquotas de rendimentos financeiros e uma nova alíquota de 5% para investimentos isentos, como FIIs (fundos de investimentos imobiliários), FIAGROs (fundos de investimento nas cadeias produtivas agroindustriais), CRIs e CRAs (certificados de recebíveis dos setores imobiliários e do agronegócio), entre outros.
A exposição de motivos da MP relata que o ganho de arrecadação decorrente das medidas propostas poderá “compensar a redução de receita decorrente das alterações do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários - IOF, a serem promovidas em medida simultânea a esta”. O relato é ambíguo, diante da situação estabelecida pelo decreto legislativo, o que apenas faz com que a tramitação dessa medida provisória seja muito importante e venha a se tornar o ajuste possível do segundo semestre de 2025.
Ainda no terreno fiscal, vale mencionar que um elemento importante na relação entre o Legislativo e o Executivo tem sido a questão das emendas. É certo que o Legislativo vem elevando o seu controle sobre o orçamento através das emendas, inclusive tornadas de execução compulsória. Também é certo que há deficiência de transparência, ao menos, no assunto das emendas, conforme longamente explicado no famoso voto da ministra Rosa Weber sobre a constitucionalidade do Orçamento Secreto (ADPF 854), assim como no excelente trabalho de Marcos Mendes.
Porém, não é correto culpar o Congresso pelo desajuste fiscal. A despesa primária para 2025 é de aproximadamente R$ 2,5 trilhões. Todas as emendas parlamentares somadas fazem cerca de R$ 50 bilhões, cerca de 2% da despesa. Não é certo forçar a narrativa que o Legislativo é gastador, e que o Executivo luta pelo equilíbrio fiscal, especialmente este.
Por fim, o COPOM, em sua 271ª. reunião (em 18 de junho), trouxe a Selic para 15%, o maior patamar em 20 anos, o segundo maior juro real do mundo, superando a Rússia e ficando atrás apenas da Turquia. O movimento foi descrito como “compatível com a estratégia de convergência da inflação para o redor da meta ao longo do horizonte relevante”.
As perspectivas para a inflação estão melhores, misturando um processo de desinflação assistida – especialmente pela desaceleração de alimentação no domicílio, tanto in natura quanto industrializados – com arrefecimento da inflação de serviços na margem. Mesmo que o mercado de trabalho ainda esteja muito aquecido, o crescimento dos rendimentos reais mostra inflexão. O cenário base é de desaceleração paulatina no segundo semestre. Nos modelos adotados pelo próprio BCB, a inflação só converge para o centro da meta em 2027. Tudo considerado, temos uma melhora surpreendente nas projeções quando comparadas a janeiro. O indicativo é de sucesso na transição da liderança no BCB, pois não houve nem um centímetro de descontinuidade na política monetária.
A má notícia é que o crowding out prossegue, o que turva as perspectivas para a política monetária. Será preciso haver melhoria no panorama fiscal para que a queda de juros se observe mais rápida e mais incisiva.