Agência de notícias
Publicado em 3 de agosto de 2025 às 13h11.
Quando Tina Liu foi contratada para lecionar literatura em uma escola pública de ensino fundamental no sul da China, seu contrato incluía os avisos habituais sobre faltas e desempenho no trabalho. Mas havia uma cláusula adicional: viajar para o exterior sem a permissão da escola poderia resultar em demissão.
A regra foi reforçada em um grupo de mensagens da equipe: “De acordo com as regulamentações das instâncias superiores, os professores precisam fortalecer sua consciência disciplinar. Atualmente, não permitiremos férias no exterior.”
Por toda a China, avisos semelhantes estão se espalhando à medida que as autoridades aumentam o controle sobre os contatos de funcionários públicos com estrangeiros. Alguns professores de jardim de infância, médicos, contratados do governo e funcionários de empresas estatais foram obrigados a entregar seus passaportes. Em algumas cidades, aposentados devem esperar dois anos para reavê-los.
Em muitas cidades, viagens ao exterior por funcionários públicos — mesmo por motivos pessoais — precisam de aprovação. Viagens de negócios para “pesquisas, intercâmbios e estudos ordinários” foram proibidas. E, na maioria das províncias, quem estudou no exterior agora está desqualificado para certos cargos públicos.
Autoridades citam diversas razões, incluindo proteger a segurança nacional, combater a corrupção e reduzir custos. No entanto, o alcance das restrições cresceu rapidamente, afetando até mesmo trabalhadores que dizem não ter acesso a informações sensíveis ou verbas públicas. O The New York Times conversou com sete funcionários públicos — entre eles, uma professora de música do ensino fundamental, uma enfermeira e uma professora de literatura — que confirmaram as restrições.
As regras fazem parte de um esforço das autoridades centrais para impor maior “disciplina política” e lealdade ideológica aos trabalhadores do governo. Duas pessoas entrevistadas disseram que também foram obrigadas a informar suas contas pessoais em redes sociais aos empregadores. Outra relatou que precisava notificar a chefia sempre que saía da cidade onde trabalhava. Alguns governos locais proibiram funcionários públicos de comer em grupos com mais de três pessoas, após diversos relatos de bebedeiras excessivas em jantares oficiais.
Entretanto, o governo está especialmente atento a contatos com o exterior. A China há muito tempo demonstra receio com espionagem e com o que considera forças estrangeiras hostis tentando semear descontentamento. Em julho, o Diário do Povo, veículo oficial do Partido Comunista Chinês, publicou um artigo afirmando que a diplomacia entre povos “existe por causa do partido” e deve ser liderada por ele.
O resultado é que, ao mesmo tempo em que Pequim se diz disposta a atrair negócios e turistas estrangeiros, impede muitos de seus próprios cidadãos de sair do país.
"Por um lado, você quer que estrangeiros venham à China. Promove a cultura chinesa e espera que isso impulsione a economia", disse Liu, que está na casa dos 20 anos.
"Mas, por outro lado, por que está nos prendendo aqui, em vez de nos deixar conhecer mais do mundo?"
Restrições de viagem para alguns funcionários do Estado não são novidade. Desde 2003, altos funcionários ou aqueles que lidam com segredos de Estado devem relatar previamente qualquer viagem ao exterior. Seus nomes são informados aos agentes de fronteira para impedir saídas não autorizadas.
Mas sob o comando de Xi Jinping, o líder mais poderoso da China em décadas, os controles se estenderam a trabalhadores de nível muito inferior.
Funcionários em seis vilarejos de pesca próximos à cidade de Zhoushan, na província costeira de Zhejiang, foram instruídos a entregar seus documentos, segundo comunicado local. Em uma cidade na província de Jiangxi, uma agência de saúde pública também pediu aos empregados que relatassem qualquer viagem internacional feita desde 2018.
Uma professora de música de uma escola do ensino fundamental na província de Hebei disse que pediu autorização para ir à Malásia neste verão, porque sua irmã vai estudar lá. A diretora da escola recusou o pedido, segundo a professora, que se identificou apenas pelo sobrenome Wang, por medo de retaliação.
Uma enfermeira de um hospital em Zhejiang disse que precisaria de quatro níveis de aprovação para viajar ao exterior. Ela, que também pediu para ser identificada apenas como Zhu, afirmou nunca ter feito o pedido, embora sonhe há tempos em visitar o Vietnã. As restrições, segundo ela, parecem revelar um medo de que até trabalhadores comuns possam fugir com informações confidenciais ou fundos ilegais — uma ideia que ela considera absurda.
"Se há algum segredo, gente como a gente saberia?", disse ela. "Que dinheiro a gente teria para fugir?"
Aqueles autorizados a viajar são às vezes obrigados a assinar compromissos de que não colocarão a segurança nacional em risco nem falarão mal da China durante a viagem.
A Universidade de Tecnologia da Mongólia Interior disse aos funcionários que não podem aceitar entrevistas da mídia nem se encontrar com “pessoas externas” no exterior sem autorização. Contatos com “forças anti-China” devem ser reportados às embaixadas chinesas.
Não entregar o passaporte em até uma semana após o retorno pode resultar em uma proibição de viagem de cinco anos.
As restrições também estão afetando as contratações. Para recém-formados que desejam ingressar no funcionalismo público chinês, alguns dos cargos mais disputados estão no programa conhecido como xuandiaosheng, ou “alunos selecionados”. Esses estudantes, recrutados em universidades de prestígio, entram numa via rápida para cargos de liderança.
Cada província define de quais universidades irá recrutar. Muitas — incluindo Guangdong, no sul — costumavam incluir universidades estrangeiras. Neste ano, Guangdong listou apenas universidades chinesas; outras cinco regiões seguiram a mesma linha no último ano. Somente Xangai ainda aceita explicitamente graduados de instituições estrangeiras para esse programa de elite.
A província de Liaoning, no nordeste, foi ainda mais longe. Quem viveu no exterior por mais de seis meses e cuja “experiência e desempenho político no exterior” sejam difíceis de investigar foi considerado inelegível este ano.
Departamentos de polícia em grandes cidades impuseram regras semelhantes. Em Xangai, ter um cônjuge ou parente próximo que se mudou para o exterior pode desqualificar um candidato.
Dongshu Liu, professor da Universidade da Cidade de Hong Kong que estuda o funcionalismo público da China, afirmou que muitas das restrições provavelmente não vêm de ordens centrais claras. Mas, com o aumento da vigilância do governo central sobre os quadros médios, esses funcionários provavelmente tentam evitar qualquer fonte potencial de problema.
"Por causa das relações entre EUA e China, por causa da competição, acho justo dizer que a sociedade chinesa como um todo se tornou mais sensível a países estrangeiros", disse o professor Liu. Para os formuladores de políticas, isso faz com que “qualquer coisa relacionada a estrangeiros seja considerada arriscada.”
O governo chinês ainda deseja manter a imagem de abertura e prefere manter esse recuo interno mais discreto, afirma Wu Qiang, analista político independente em Pequim. Embora alguns governos locais tenham publicado regras sobre passaportes online, muitos entrevistados disseram que foram informados apenas verbalmente.
A aplicação das restrições parece ser desigual. Zhu, por exemplo, disse que enfermeiras em outros hospitais da mesma cidade ainda têm seus passaportes.
E funcionários públicos não são os únicos sob vigilância quanto a laços internacionais. A agência de segurança estatal da China já alertou várias vezes os cidadãos comuns sobre os perigos de viajar para o exterior, ou sobre estrangeiros que poderiam ser espiões.
Dong Mingzhu, presidente da Gree Electric — uma grande fabricante chinesa de eletrodomésticos — declarou este ano que evitaria contratar pessoas que voltaram do exterior, pois poderiam ser espiãs.
A declaração gerou ampla repercussão negativa nas redes sociais, com críticas de que promovia discriminação e prejudicaria a competitividade global da China. Até o Diário do Povo publicou um editorial defendendo os talentos formados no exterior.
No entanto, embora chineses comuns possam reclamar das restrições às suas liberdades, funcionários públicos dificilmente resistirão, diz o professor Liu, em Hong Kong.
De fato, todos os funcionários entrevistados pelo Times afirmaram que não pediriam demissão por terem os passaportes confiscados.
Zhu, a enfermeira em Zhejiang, disse que seu salário estável — cerca de US$ 27 mil por ano, muito acima da média da sua cidade — valia mais do que a liberdade negada. E sabia que muitos colegas estavam na mesma situação.
"Se todo mundo morrer, tudo bem, sabe?", disse ela. "Desde que eu não seja a única."