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‘Nunca tínhamos visto uma inflação assim’, diz presidente da Nestlé Brasil sobre o cacau e café

Com a terceira maior operação da Nestlé no mundo, o Brasil sente o peso dos custos, mas aposta em planejamento e inovação para manter presença em 99% dos lares

Marcelo Melchior, CEO da Nestlé Brasil: “Nossas fábricas são desenhadas para atender o mercado local” (Leandro Fonseca /Exame)

Marcelo Melchior, CEO da Nestlé Brasil: “Nossas fábricas são desenhadas para atender o mercado local” (Leandro Fonseca /Exame)

Publicado em 17 de setembro de 2025 às 10h44.

Última atualização em 17 de setembro de 2025 às 11h43.

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“Tivemos uma inflação de matéria-prima muito elevada, principalmente cacau e café. Nunca tínhamos visto uma inflação assim”, afirma Marcelo Melchior, CEO da Nestlé Brasil, em entrevista exclusiva à EXAME durante o podcast “De frente com CEO”.

Embora a Nestlé Brasil tenha registrado aumento de dois dígitos em receita no último ano, a pressão de custos este ano levou a uma queda em volumes, algo que a companhia não pode permitir, uma vez que torna as fábricas ineficientes.

“Temos crescimento em valores, mas, com essa inflação, estamos decrescendo em volume. E isso é muito sério, porque, se o volume cai, nossas fábricas ficam ineficientes — e isso não podemos permitir”, afirma o CEO.

No caso de uma multinacional como a Nestlé, perder volume significa não apenas queda imediata de receita, mas também ineficiência industrial. As fábricas da Nestlé são desenhadas para operar em alta escala. Se o giro diminui, o custo unitário sobe e a competitividade se perde no mercado.

A disparada de preços do cacau e do café se tornou um dos maiores desafios atuais da companhia, que aposta em inovação para continuar gigante no mercado nacional.

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De onde vêm o cacau e o café da Nestlé?

Cerca de 70% do cacau usado pela Nestlé vêm de lavouras brasileiras, e aproximadamente 30% é importado, principalmente da Costa do Marfim e de Gana, na África Ocidental.

“O que estamos fazendo agora é trabalhar para melhorar a produção e aumentar a produtividade do cacau brasileiro, e como podemos ‘tecnificar’ essas lavouras,” afirma o CEO.

O desafio é levar o cacau ao mesmo nível de sofisticação que tem o café e o leite da Nestlé, afirma o CEO.

“Todo o café que compramos e usamos no Brasil é certificado. Ele está no que nós chamamos de Coffee Plan”, diz Melchior.

“Não podemos errar com o consumidor”

Os preços em alta das matérias-primas dão força a um outro desafio da Nestlé: a compra recorrente que sustenta o negócio. Em categorias de baixo tíquete médio (produtos de R$ 5, R$ 10, R$ 15, como achocolatados, biscoitos e leite condensado), o consumidor toma decisões quase diárias, diz o CEO. Um deslize, por menor que seja, pode custar a recompra no dia seguinte.

“Nós trabalhamos com produtos que estão em 99% dos lares. Se eu falhar hoje com você, amanhã você já não compra mais,” diz o presidente.

Por isso, Melchior fala em “responsabilidade gigante”. O compromisso é manter qualidade e consistência em todos os pontos: na qualidade do produto, no abastecimento das gôndolas e nos preços competitivos.

Exportação: impacto limitado, foco no Brasil

A Nestlé Brasil representa a terceira maior operação da Nestlé no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e China. Segundo Melchior, a posição global não faz sentido.

“O Brasil não é o terceiro país do mundo nem em economia nem em número de habitantes. Isso significa que, durante os 103 anos de presença no país, as gerações anteriores de profissionais trabalharam superbem”, diz o presidente.

O desenho industrial da operação Brasil segue voltado para o mercado doméstico: exportações representam menos de 10% do faturamento, o que significa que medidas externas, como o tarifaço de Donald Trump, não impactou a unidade.

“Nossas fábricas são desenhadas para atender o mercado local”, afirma Melchior.

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Onde a Nestlé está inovando (de verdade)

A estratégia da Nestlé Brasil, segundo Melchior, é investir primeiro no “core business” para depois ter estrutura para inovar.

“Precisamos manter os clássicos, Leite Moça, Ninho, cafés, chocolates, vivos e rentáveis, porque inovação nunca nasce grande, é o core que permite inovar”, diz o CEO.

A empresa vem aplicando redução gradual de açúcar e sódio, adição de vitaminas e embalagens mais sustentáveis, sem romper preferência de sabor. Tudo passa pelo teste “60-40”, conta Melchior.

“Nós temos um teste, em que 60% dos consumidores, às cegas, têm de preferir o teu produto versus qualquer produto da concorrência. Então, você não pode tomar decisões, seja de sabor, seja de outras coisas, porque às cegas, sem saber que o produto é teu, eles podem escolher um outro. E nós temos de ter 60% dos consumidores preferindo o teu,” diz o CEO.

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M&A como acelerador (não como estratégia)

Aquisições recentes, como a fábrica da Garoto (2016), Pura Vida (2021) e o Grupo CRM — dono das marcas Kopenhagen, Brasil Cacau e Kop Koffee (2023), encurtam o caminho em categorias estratégicas e criam alavancas de valor, mas segundo o presidente, não são estratégias.

“Aquisição não é estratégia. Ela pode ser um acelerador da tua estratégia, mas não é a estratégia em si. Então, nós sempre estamos vendo no mercado se tem oportunidades de aquisições que possam acelerar a nossa estratégia numa categoria ou segmento,” diz o CEO.

Dados da Nestlé global

A Nestlé anunciou em fevereiro de 2025, durante a divulgação do balanço global, um crescimento de vendas acima do esperado, de 0,7% para 0,8% em volume em 2024. O resultado foi impulsionado por aumentos de preços, como o café e cacau, mas a expectativa da companhia é de uma margem de lucro ainda mais estreita neste ano.

Na época, o CEO global, Laurent Freixe, afirmou que a redução seria temporária, já que a companhia está “investindo para crescer”.

No Brasil, o presidente Melchior reforça que o desafio segue sendo a inflação de matéria-prima muito elevada, mas as expectativas são mais positivas. "Nesse ano devemos crescer duplo dígito", diz o CEO ao podcast da EXAME. 

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O que causou os preços recordes do café e do cacau?

O café e o cacau, duas das commodities mais sensíveis ao clima, têm sido protagonistas da alta de preços dos alimentos nos últimos meses. No caso do café, a combinação de El Niño no Sudeste Asiático — que reduziu a safra de robusta no Vietnã e na Indonésia — e temperaturas acima da média no Brasil afetou tanto a quantidade quanto a qualidade dos grãos.

“A florada do café brasileiro no ano passado foi ruim, com seca e queimadas, o que resultou em grãos menores e de qualidade inferior. Isso antecipou a alta que vimos no início deste ano”, afirma Felippe Serigati, pesquisador do FGV Agro.

Outro agravante é o cenário de juros elevados nos Estados Unidos, que levou a indústria a trabalhar com estoques curtos. Assim, quando os choques climáticos ocorreram, o impacto sobre os preços foi mais intenso. Como o café é precificado na Bolsa de Nova York, mesmo sendo o Brasil o maior produtor, a pressão internacional se reflete diretamente nos valores pagos aos agricultores locais.

No caso do cacau, os problemas são ainda mais estruturais. Grande parte da produção global vem da Costa do Marfim e de outros países da África Ocidental, regiões que enfrentam limitações climáticas recorrentes. Mas há um segundo fator: a cultura do cacau é considerada pouco “domesticada”, ou seja, não dispõe da mesma diversidade de sementes resistentes, precoces ou adaptadas a diferentes condições climáticas como ocorre com o milho, por exemplo.

“A oferta de cacau sente de forma mais intensa qualquer variação climática, enquanto a demanda segue firme e crescente, já que o chocolate é um produto que agrada em diferentes mercados”, afirma Serigati.

Ao contrário de café e cacau, o mercado de leite vive um momento mais confortável. Segundo o pesquisador do FGV Agro, os preços pagos ao produtor se recuperaram após um período de margens muito apertadas entre 2020 e 2022.

“Vimos o milho, principal insumo para a ração, operar em patamares mais baixos, o que abriu espaço para uma recomposição das margens da pecuária leiteira”, afirma.

Entre choques climáticos, recuperação de margens no campo e na empresa, o que se desenha para este ano é um cenário de maior equilíbrio, mas ainda de atenção e planejamento no agronegócio.

Leia também: Por que café, cacau e azeite sobem tanto de preço, mas trigo e milho são mais estáveis?

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