True crime: gênero se tornou fenômeno no Brasil nos últimos anos (Canva)
Repórter
Publicado em 14 de novembro de 2025 às 05h51.
O true crime se consolidou como um dos gêneros mais fortes do streaming. Tremembé, uma das produções mais recentes do Prime Video, alcançou o topo da plataforma poucos dias após a estreia. Na Netflix, o documentário sobre o Caso Eloá repetiu o fenômeno — e tudo em menos de duas semanas.
O interesse pelo gênero é mundial e altamente lucrativo. O mercado global de séries e filmes de histórias baseadas em crimes deve atingir US$ 347,14 bilhões até 2031, com crescimento médio anual de 7,2%, segundo a Verified Market Research.
Nos Estados Unidos, o gênero movimenta a indústria há décadas. Casos de grande repercussão, como os de O.J. Simpson, Ted Bundy, Jeffrey Dahmer e Charles Manson, tornaram-se produtos altamente rentáveis.
No streaming, Dahmer: um canibal americano, da Netflix, acumulou 190 milhões de horas assistidas apenas na primeira semana e foi apontado pela empresa como um dos responsáveis pelos bons resultados financeiros de 2022, quando registrou US$ 7,9 bilhões em receita, junto a outros sucessos como a quarta temporada de Stranger Things.
Para André Vilela Komatsu, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o crescimento do true crime está ligado à lógica das plataformas digitais.
“O fascínio humano por crimes reais existe há séculos, mas chama atenção que esse gênero tenha ocupado as primeiras posições nos rankings de audiência. Isso se deve à enorme disponibilidade de informações sobre casos criminais”, diz em entrevista à EXAME.
Ele destaca que essa abundância de dados barateia a produção e ajuda as empresas a reduzirem os riscos. Além disso, existe ainda outro fator, típico do streaming. "As plataformas operam assim. Algoritmos identificam que esse tipo de conteúdo gera forte retenção e passam a recomendá-lo massivamente — o que gera ciclos contínuos", afirma.
Tremembé, do Prime Video: série se tornou fenômeno de audiência em menos de duas semanas (Prime Video/Montagem EXAME/Reprodução)
Para Noel dos Santos Carvalho, professor da Unicamp, o crescimento do true crime se explica principalmente pelo aspecto econômico. “O fator principal é o econômico”, diz em entrevista à EXAME.
Ele explica que o avanço do gênero está alinhado com as necessidades das plataformas de manter o público ativo. “As pessoas estão acessando conteúdos pagos nas plataformas e canais de acesso condicionado. Portanto, há público", afirma.
Carvalho também destaca que, com o mercado competitivo, as séries precisam ser cada vez mais profissionalizadas e bem produzidas. “As plataformas precisam renovar constantemente o seu catálogo, então, está fechado o circuito.”
No ambiente competitivo do streaming, o true crime oferece aos consumidores algo que poucos gêneros entregam: a combinação de forte audiência inicial com excelente desempenho de catálogo, capaz de manter a relevância mesmo meses ou anos após o lançamento.
Os crimes verdadeiros são conteúdos que não envelhecem na mesma velocidade que a ficção. Eles podem ser reeditados, ampliados e revisitados. O que faz deles produtos extremamente valiosos do ponto de vista de negócios.
Um exemplo é Ryan Murphy, produtor de cinema e televisão, conhecido por séries como Glee e American Horror Story.
Murphy, que entrou no true crime oficialmente em 2014, com a série American Crime Story, que destrincha grandes casos da história dos EUA, como o assassinato do estilista Gianni Versace, havia rendido cerca US$ 341 milhões para a Netflix até 2023 com séries como The Watcher e — claro — Monstros, segundo a Parrot Analytics.
“Os algoritmos identificam que esse tipo de conteúdo gera forte retenção e passam a recomendá-lo massivamente — o que gera ciclos contínuos”, diz André Vilela Komatsu, da USP.
A série de Murphy que conta a história de Dahmer, por exemplo, foi responsável por 37% dessa receita em apenas nove meses depois do lançamento da série em 2022. Foi o programa que impulsionou a receita acumulada para mais de US$ 300 milhões no quarto trimestre daquele ano.
Outras temporadas, igualmente sucessos de público, foram lançadas posteriormente. Em setembro de 2024, foi lançada a série Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais, que dramatiza os assassinatos cometidos pelos irmãos Menendez em 1989 e o julgamento que se seguiu — produção que enfrentou críticas da família por supostas imprecisões.
Ele também produziu a terceira temporada da antologia, Monstro: A História de Ed Gein, centrada na vida do serial killer Ed Gein, que estreou em outubro de 2025.
Komatsu explica que o consumo constante de true crime pode aumentar a percepção de ameaça e a hipervigilância. Ele alerta que uma parcela menor do público pode desenvolver vínculos disfuncionais com criminosos ou se envolver em ‘fandoms sombrios’, o que pode gerar efeitos emocionais mais complexos.
Esse fenômeno é alimentado principalmente pelos ambientes digitais, segundo o especialista. “Jovens e jovens adultos parecem ser mais vulneráveis a essa imersão exagerada, especialmente em fóruns e redes sociais, onde as fronteiras entre narrativa, investigação amadora e ficção se confundem com maior facilidade.”
Komatsu também observa que, para pessoas expostas à violência cotidiana, o consumo de true crime pode intensificar ansiedade e sensação de insegurança, criando uma ‘dupla exposição’. Ele reforça que os efeitos emocionais não são uniformes e dependem de contexto e histórico de vida. “Os efeitos do consumo excessivo não são neutros”, diz.
Outro ponto sensível é a relação das plataformas com as famílias das vítimas. Komatsu explica que a falta de controle das famílias sobre as produções é uma grande fonte de sofrimento para elas. “O problema central é a falta de controle: não podem impedir produções, não podem corrigir erros, e muitas vezes descobrem a existência de uma série apenas quando ela é lançada", afirma.
Dahmer: série rendeu recordes — e lucros — à Netflix (Netflix/Montagem EXAME/Reprodução)
Esse distanciamento ficou evidente no caso da série Dahmer, quando o primo de Errol Lindsey, uma das vítimas, criticou publicamente a dramatização.
Eric Isbell escreveu no X (antigo Twitter): “Minha família está irritada com essa série. Está nos retraumatizando de novo e de novo, e para quê?” Ele também condenou a reconstituição do colapso de sua prima, Rita Isbell, durante o julgamento: “Recriar minha prima tendo um colapso emocional no tribunal diante do homem que torturou e assassinou seu irmão é loucura.”
Carvalho reforça que esse tipo de produção se apoia em um ciclo já garantido de atenção. “A sociedade é bombardeada com a notícia. O público está formado, portanto. A série encontra a mídia pronta. É um bom negócio, sem risco.”