Estagiária de jornalismo
Publicado em 16 de julho de 2025 às 14h28.
Última atualização em 16 de julho de 2025 às 14h42.
Em casa, a ex-ginasta olímpica brasileira Laís Souza acorda, acessa o celular, abre o app do banco, responde amigos nas redes sociais, manda áudios no WhatsApp, assiste a vídeos em streaming — tudo com a mesma naturalidade de qualquer pessoa conectada. Mas para a atleta que ficou tetraplégica após um acidente em 2013, essas tarefas rotineiras não são triviais. Elas dependem de um avanço notável em tecnologia assistiva, hoje potencializado pela inteligência artificial (IA).
Em vez de digitar com os dedos, Laís usa um sensor fixado nos óculos. O dispositivo interpreta cada inclinação sutil de sua cabeça e transforma esses gestos em cliques e comandos na tela. Para ela, é mais do que praticidade: é autonomia e privacidade.
“O que ele garante é que sou eu mesma escrevendo a mensagem, por exemplo. Tenho total liberdade”, conta Laís, destacando o valor de poder se comunicar sem depender de outra pessoa para digitar.
O Colibri, como é chamado o dispositivo, é um exemplo de como a IA está redefinindo o significado de tecnologia assistiva, ampliando a participação de pessoas com deficiência não apenas no espaço físico, mas também no digital.
Laís Souza usa o sensor fixado nos óculos para navegar no celular e responder mensagens de forma autônoma, exemplificando como a inteligência artificial amplia a acessibilidade digital. (Colibri/Reprodução)
Por muito tempo, acessibilidade significou rampas em calçadas, elevadores adaptados ou vagas reservadas. São mudanças fundamentais, mas que respondem sobretudo ao mundo físico.
Hoje, porém, a vida acontece cada vez mais em telas: pagar contas, marcar consultas, estudar, resolver burocracias, conversar com amigos ou família. Para quem tem limitações de mobilidade nas mãos, esse universo digital pode se tornar um novo obstáculo — menos visível, mas igualmente restritivo.
É nesse ponto que a inteligência artificial, com sua capacidade de aprender padrões e se adaptar a cada pessoa, está provocando uma transformação. Em vez de dispositivos genéricos, surgem soluções personalizadas que reconhecem gestos, voz e até expressões faciais para facilitar a interação digital.
No caso do Colibri, a lógica é transformar movimentos mínimos em comandos precisos. Com sensores fixados nos óculos, o sistema mapeia as inclinações da cabeça, identifica o que é um gesto voluntário e traduz isso em navegação fluida na tela: rolar páginas, abrir apps, responder mensagens.
Graças à IA, o dispositivo aprende o padrão do usuário, evitando cliques acidentais causados por espasmos ou movimentos involuntários. Para Laís, isso significa não apenas usar a internet, mas fazê-lo no próprio ritmo, sem intermediários.
“É como oferecer uma nova forma de interação para quem enfrenta barreiras de mobilidade. Mais que isso, devolve a escolha”, explica Adriano Assis, da TiX, empresa que desenvolveu o Colibri.
É um detalhe técnico com impacto humano profundo: possibilitar a transição de quem apenas observa para quem interage plenamente.
Outro uso marcante da IA em tecnologia assistiva está na reconstrução da fala. Pessoas que perderam a voz em decorrência de acidentes ou doenças podem usar gravações antigas para treinar modelos digitais que imitam seu timbre, entonação e sotaque.
Foi o que ocorreu com Elaine Luzia dos Santos, que sofreu um AVC grave e desenvolveu a chamada síndrome do encarceramento. Com o apoio da IA, ela hoje consegue participar de conversas e até dar palestras usando uma voz digital fiel ao que sempre foi seu modo de falar.
Nesse caso, a tecnologia não apenas devolve palavras. Devolve identidade.
Segundo a consultoria Bain & Company, o mercado global de produtos e serviços ligados à IA pode alcançar quase US$ 1 trilhão até 2027. Parte desse crescimento se traduz em dispositivos cada vez mais inteligentes — e mais acessíveis — para quem antes ficava à margem da inovação.
A brasileira TiX, por exemplo, adota um modelo de assinatura para o Colibri, com mensalidades em torno de R$ 150, buscando democratizar o acesso. Ainda assim, especialistas lembram que o preço não é o único desafio.
André Santos, da Campsoft, empresa que criou a plataforma de audiolivros Tocalivros, ressalta: “A tecnologia assistiva precisa ser universal, personalizada e ética.”
A Tocalivros usa IA para criar narração automática, ampliando o acesso a pessoas com deficiência visual, crianças ou idosos. Mas ainda há limites. “É melhor ter um audiolivro por IA do que não ter nenhum”, reconhece André. “Mas buscamos o equilíbrio com narradores humanos.”
Segundo o IBGE, mais de 17 milhões de pessoas vivem no Brasil com algum tipo de deficiência. A IA pode abrir novos caminhos para inclusão, mas sozinha não resolve desigualdades históricas.
Ela pode — e deve — ser ferramenta para ampliar a autonomia e a participação social, transformando a relação com o mundo digital em uma escolha consciente e individual.
Tecnologia não substitui cuidado. Mas pode garantir algo essencial: o direito de decidir como viver.